Foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 14-A/2021, com execução a partir das 00h00 de segunda-feira dia 15 de fevereiro, que estabelece a possibilidade das operadoras limitarem o acesso a serviços de Internet sempre que exista excesso de tráfego com degradação do serviço:
1- Limitar ou inibir determinadas funcionalidades, nomeadamente serviços audiovisuais não lineares, de que são exemplo o de videoclube, as plataformas de vídeo e a restart TV, e o acesso a serviços de videojogos em linha (online gaming) e a ligações ponto-a-ponto (P2P), caso tal se revele necessário.
O mesmo decreto permite também balancear serviços degradando a largura de banda disponível:
2- [..] ficam autorizadas a executar outras medidas de gestão de rede e de tráfego, nomeadamente de bloqueio, abrandamento, alteração, restrição ou degradação de conteúdos [..]
O objetivo é manter disponíveis o que o decreto determina como serviços prioritários, na verdade uma longa lista de serviços do estado começando com o do Ministério da Saúde e das entidades prestadoras de cuidados de saúde integradas na rede do Serviço Nacional de Saúde e descendo na prioridade numa longa lista que integra quase todos os serviços do governo central.
Quando os governos intervêm
Apesar da estranheza que o conteúdo deste decreto possa suscitar, remetendo para forma de controlo dos conteúdos na rede praticada em países com regimes autoritários, a verdade é que muitos países democráticos tem há muito tempo legislação que permite, em casos excecionais, que a Autoridade de Proteção Civil intervenha. Nos Estados Unidos a FCC (equivalente norte-americano da Anacom) dispõe desde os anos 60 ferramentas legais e técnicas que permitem, por exemplo, a comutação instantânea dos sinais de emissão de rádio e televisão assim como do seu equivalente nas redes de televisão por cabo e também nos dados, com o objetivo de manter as autoridades ligadas entre si e também disponibilizar informações e orientações aos cidadãos durante grandes catástrofes.
Mas tal não é o caso que esta lei prevê e desconhece-se que tipo de informação sobre a saturação das redes o governo dispõe para dar este passo.
A infraestruturas de Portugal, empresa pública, fazem uma parte significativa do “backbone” do tráfego dos operadores entre regiões, e devem conhecer quão perto se pode estar do limite de um serviço com qualidade com os recursos de rede disponíveis a nível nacional. Em conjunto com a FCCN estas são apenas algumas das formas diretas de que o governo dispõe para monitorizar diretamente a situação do rácio entre a capacidade instalada e a procura.
Dados do relatório semanal da Anacom a 7 de fevereiro sobre o tráfego de dados fixos e móveis
+ 111%: quão perto da rotura ?
O tráfego de dados é semanalmente monitorizado pela Anacom, e publicado em relatório público no seu site. No último relatório podemos constar que o tráfego de dados fixos, que representa 96% do total do tráfego de dados, está
com mais de 250 000 TB, o que equivale a 111% acima da semana homóloga em 2020, e 23% acima da pior semana do primeiro confinamento.
O sinal mais preocupante é que estes últimos dados se referem à semana anterior ao início do período letivo – ou seja, sem o tráfego fixo escolar.
Com centenas de milhares de aluno agora conectados e com mais 370 mil PCs a chegaram aos alunos infoexcluídos até ao final de Março, o problema só pode agravar. Se no ensino primário e secundário for atingida a plenitude do ensino à distância, estamos a introduzir 1.2 milhões novos consumidores de dados em streaming de vídeo.
Sendo dados fixos ou móveis, na ligação entre regiões do continente tudo acaba por passar maioritariamente nas mesmas infraestrutura de fibra.
Lisboa concentra a maior parte dos data centers públicos e empresariais, também o edge de cloud providers e de redes socias, assim como a ancoragem da quase totalidade dos cabos submarinos que ligam Portugal ao mundo.
É também na região este da capital que a FTC - FCCN tem os dois pontos do Gigapix (Internet eXchange Point), que são os "pontos neutros" de troca de tráfego entre Telcos e tambem entre estas e outros providers. Um dos pontos está no Laboratório Nacional de Engenharia Civil em Alvalade, e outro mais recente na Equinix no Prior Velho.
Assim na grande Lisboa dificilmente acontecerão constrangimentos, mas o mesmo pode não ocorrer no resto do país. A corda Lisboa-Braga é responsável por grande parte do transporte de dados fora de Lisboa. Existem dois operadores responsáveis por grande parte deste trafego, a Altice e a IP Telecom, que totaliza perto de 8.000 km de fibra adjacente à ferrovia e à rodovia das Infraestruturas de Portugal. Tal como acontece com as redes elétricas de alta voltagem da REN, também na fibra existem anéis que permitem redundância nos percursos entre os pontos mais importantes.
A capilariedade da rede
Tem existido um esforço de todos os operadores e NSPs em aumentar de forma exponêncial a capacidade de interconexção reforçando assim a infraestrutura troncal. Portugal tem ainda disponiblidade significativa no que diz respeito as suas ligações internacionais.
Possivelmente o maior contrangimento pode não estar a acontecer no backbone mas sim no final das redes, junto dos consumidores.
Com parques de escritórios e cidades cujo centro foi esvaziado de trabalahdores, não é só os 111% de consumo adicional que estão a levar ao limite as redes, mas o facto dos pontos de consumo terem migrado para a periferia.
Esse é um problema seguramente muito mais demorado e custoso de resolver, porque é a capilariedade das redes nas areas residênciais que teria de ser reforçada.
Qual é o stress a que toda esta infraestrutura está sujeita é de momento desconhecida do público com exepção do que todos nós podemos detectar na degradação de serviços como os de videoconferência que usamos , mas o decreto-lei agora publicado é revelador que a margem ainda disponível para o crescimento do tráfego com o ensino à distância pode estar comprometida.
Conheça aqui o decreto-lei
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