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Utilities: um setor em reinvenção

O desafio da transição energética está a obrigar as empresas que atuam no setor das utilities – energia, gás, água e resíduos – a acelerar a sua transformação digital, sob pena de perderem competividade. Redução de custos operacionais, melhor desempenho, e mais lucro são outras consequências positivas da aposta na inovação e na tecnologia

Utilities: um setor em reinvenção

Há uma onda de transformação no setor das utilities que impõe uma adaptação e uma antecipação ainda mais rápidas do que em outros setores. Aqui, vive-se uma tripla mudança a que os players mais tradicionais – os incumbentes na energia, no gás e na água – precisam de dar resposta, sob pena de perderem o comboio da inovação e da competitividade. Por um lado, a transição energética e o desafio de desenvolver fontes alternativas de energia renovável, obrigatórios e urgentes para cumprir as metas climáticas definidas pelo Acordo de Paris. Por outro, o desafio da entrada de novos comercializadores, da produção descentralizada e da gestão de comunidades, também elas produtoras e comercializadoras de energia e, por último, a gestão das oportunidades geradas pela introdução de mais e melhor tecnologia nos sistemas e processos. A estes desafios juntam-se ainda outros como os quadros regulatórios mais exigentes, clientes que consomem de forma mais responsável e um ambiente social global em mudança. A próxima década será, por isso, o momento da reinvenção para as empresas de utilities, e um caminho exigente que terão que percorrer.

Empresas de grande dimensão como a Galp ou a EDP, em Portugal, já redefiniram estratégias que procuram antecipar estes e outros desafios. A prová-lo está o recente anúncio da petrolífera de que fechará o último poço de extração de petróleo neste início de ano, um passo coerente com a estratégia que, nos últimos anos, procura diversificar o portfólio de serviços e que aposta em áreas como a produção de energias renováveis (com enfoque no solar e nas eólicas) e na mobilidade elétrica. “Hoje, ninguém tem dúvidas de que o caminho é o da transição energética, da descarbonização e da eficiência energética”, disse Teresa Abecasis, administradora da Galp para a área comercial, durante um dos painéis de debate na conferência Portugal Smart Cities Summit, que decorreu recentemente em Lisboa. A administradora confirmou também a intenção da empresa de investir 180 milhões de euros em investigação e desenvolvimento e na inovação, até 2025, já anteriormente revelada pelo CEO, Andy Brown, durante a Web Summit.

Já a EDP anunciou um investimento de cerca de 800 milhões de euros na transformação digital, materializado na forma de um plano estratégico que iniciou em 2019 e que prevê concluir em 2022. “Estamos a adotar, em escala, tecnologias digitais, como é o caso da realidade aumentada, da inteligência artificial e da robotização, para assim cumprir três objetivos: proporcionar uma melhor experiência aos nossos clientes e colaboradores, racionalizar a gestão dos ativos e aumentar a eficiência das operações”, disse José Ferrari Careto, CEO da E-redes, a antiga EDP Distribuição, em entrevista recente.

Ambas as empresas, de background estatal e com uma dimensão que podia torná-las mais lentas na reação à mudança, perceberam antecipadamente que a transformação digital e a inovação seriam realidades incontornáveis e motores de criação de valor para as suas organizações e para o setor das utilities em geral. Aliás, dados do McKinsey Global Institute apontam para uma redução de até 25% em despesas operacionais com a transformação digital, assim como para um aumento de desempenho entre 20 e 40% neste tipo de organizações, especialmente em áreas como a satisfação do consumidor e a segurança. O aumento do lucro, apesar de mais difícil de quantificar em percentagem, é, para a consultora, um resultado direto de qualquer estratégia de transição digital.

Pandemia acelera mudança

Tal como noutros setores económicos, a pandemia impulsionou a transformação digital nas empresas de utilities, quer internamente, quer na adaptação do modelo de negócio às novas exigências do mercado. Os confinamentos, por exemplo, obrigaram estas organizações a repensar os seus canais de contacto com os clientes, acelerando a implementação de estratégias de omnicanal e a introdução de chatbots para atendimento ao cliente. Outras tecnologias como IoT (Internet of Things), Inteligência Artificial (IA) ou Machine Learning são, também, cada vez mais essenciais para os prestadores de serviços na área da energia, da água ou do saneamento básico.

Por outro lado, recorda um estudo da PwC, o impacto da pandemia veio demonstrar que estas empresas têm que estar preparadas para garantir a continuidade do negócio, mesmo em situações imprevistas. Por exemplo, a deslocação das pessoas para o teletrabalho, logo no início da crise pandémica, obrigou a repensar a distribuição e a garantir o fornecimento de energia elétrica para locais de consumo distintos, sem falhas e sem interrupções. O mesmo aconteceu com as telecomunicações.

Isto significa que a cadeia de valor do setor das utilities está a mudar, desde a produção de energia ou gás, passando pela tecnologia que faz a gestão das redes, até à forma como estes serviços são consumidos, o que traz desafios acrescidos. No entanto, na opinião de Sónia Fontoura, End User Sales Manager da Schneider Electric Portugal, “sentimos que há ainda um longo caminho a percorrer no que toca aos apoios financeiros, à inovação e à qualidade das infraestruturas digitais de todo o país”.

Na vertente tecnológica, o papel da Schneider Electric passa por contribuir para a transformação digital destas empresas de utilities, através da implementação de um conjunto de soluções específicas, que desenvolve e comercializa para este segmento de mercado. Sónia Fontoura destaca a AVEVA System Platform, uma plataforma de software industrial expansível para aplicações de supervisão, SCADA e IIoT, que integra o processo com os sistemas empresariais da empresa, para uma maior fiabilidade e gestão eficiente. A responsável de vendas da Schneider Electric aponta ainda as soluções para a gestão de pequenas redes (Microgrids), “um elemento cada vez mais relevante no setor das utilities e para o qual criámos um software dedicado, o Microgrid Advisor (que conecta, monitoriza e controla os RED das instalações)”, salienta.

Desafios difíceis geram boas oportunidades

Num setor, como o das utilities, em que o domínio de empresas incumbentes ainda é uma realidade, os desafios da mudança abrem a porta à entrada de novos players, não tradicionais, muitos deles oriundos de setores completamente distintos. No fundo, é o mercado a funcionar, a acabar com monopólios de longa data e a provar que quem não se adapta corre o risco de perder o lugar. As parcerias ou aquisições de empresas de raiz tecnológica também são uma tendência no setor, uma vez que o digital e as ferramentas tecnológicas são essenciais ao sucesso. Redes inteligentes, geração distribuída, casas conectadas e novas oportunidades de eletrificação são alguns dos exemplos que demonstram a importância da tecnologia.

Na Galp, a criação de um ecossistema de inovação, assente no apoio a startups cuja tecnologia possa vir a ser absorvida pela energética faz parte da estratégia de transformação digital, rumo à descarbonização. A EI – Energia Independente – comercializadora de soluções fotovoltaicas nasce da inovação da Galp e é hoje independente, o mesmo que acontece com a Flow, startup criada no universo da petrolífera com vista a abordar o mercado da mobilidade elétrica. Dois exemplos que demonstram que a tecnologia é uma ferramenta incontornável no percurso de transformação deste, e de outros, setores.

Melhorar a relação com os clientes, a diferentes níveis, é outro desafio que pode, em simultâneo, ser visto como uma oportunidade. Por um lado, os consumidores estão mais exigentes, o que obriga os comercializadores a estarem atentos às suas necessidades pois desta atenção depende, muitas vezes, a fidelização dos clientes. Por outro lado, a conectividade com os clientes, fruto da evolução da automação dos sistemas e dos processos, pode representar uma oportunidade de monitorizar a utilização dos recursos em tempo real – com contadores inteligentes, por exemplo –, ou potenciar o desenvolvimento de aplicações através das quais os próprios clientes controlam o seu consumo de energia, gás ou água.

Cidades inteligentes e sustentáveis

Antecipar necessidades, otimizar recursos e oferecer serviços úteis aos habitantes são os desafios das cidades inteligentes que começam a fazer parte do panorama nacional. À semelhança do que se faz noutros países, Portugal está a acompanhar a tendência e são já vários os exemplos de municípios que estão a trilhar esse caminho. Soluções sustentáveis e ‘amigas do ambiente’ tendem a ser o primeiro passo em muitas cidades, mas para que se construa uma verdadeira cidade inteligente é preciso ir mais longe. Mobilidade pública, privada e redes energéticas inteligentes são outras componentes essenciais.

No Seixal, por exemplo, a Câmara Municipal criou um ‘living-lab’ para a descarbonização que já permitiu reduzir o consumo energético da cidade em 28%. Adicionalmente, é feita a valorização de bio resíduos através da recolha seletiva, que são depois encaminhados pelo município para a produção de biogás e de outras energias renováveis. Durante a conferência Smart Cities Summit, o presidente da Câmara do Seixal, Joaquim Santos, desvendou ainda outro projeto inovador, em desenvolvimento no município. Trata-se da primeira molécula de hidrogénio verde, que está a ser produzida pela Gestene, uma empresa do concelho, que será mais tarde injetada na rede energética.

Já na margem norte do Tejo, o primeiro ‘bairro solar’ marca a estreia das comunidades de autoconsumo em Portugal. Em Belas, no concelho de Sintra, o Lisbon Green Valley tem como objetivo produzir energia, 100% limpa, a partir do sol, e reduzir a fatura de eletricidade dos membros da comunidade. Este bairro, que é também um dos mais sustentáveis da Europa, foi o escolhido para piloto na produção e partilha de energia localmente. A título de exemplo, com recurso a nove painéis fotovoltaicos de 330W – num total de 2970W de potência instalada em todo o bairro – será possível poupar cerca de 500 euros anuais e reduzir a emissão de aproximadamente uma tonelada de CO2 por ano.

Esta é apenas a primeira comunidade energética das 60 que, segundo um estudo da CSIDE, empresa que desenvolve tecnologia na área das soluções inteligentes para casas e sistemas de gestão de energia, serão criadas ao longo dos próximos dois anos. Um investimento que contará com o apoio de municípios e de empresas privadas e que chegará aos 32 milhões de euros. A CSIDE está a trabalhar com alguns municípios para o planeamento e implementação deste tipo de projetos que, consoante a tipologia de ligação à rede, permitirão poupar entre 10% e 15% na fatura de eletricidade. Considerando um consumidor residencial, com uma fatura mensal na ordem dos 50 euros, a poupança mensal pode ser de 20 a 30% face ao comercializador de energia tradicional, garantem os responsáveis da empresa.

Sem revelar qual o município, Sónia Fontoura dá outro exemplo do que pode ser feito, ao nível das utilities, para melhorar o desempenho energético nas cidades. “Equipámos o parque de edifícios público com sensores de temperatura, humidade e medição de energia, integrados num sistema de gestão técnica, também fornecido por nós, que permite otimizar o consumo energético dos seus sistemas de ar condicionado, iluminação e carregamento de veículos elétricos”. A responsável de vendas da Schneider Electric destaca a arquitetura EcoStruxure, que inclui soluções variadas para este tipo de edifícios. Para edifícios públicos, acrescenta, “contamos com diversos produtos conectados, como os Smart Panels (quadros elétricos), SmartX Controllers (controladores de automação), ou a solução EVLink (carregamento de veículos elétricos)”.

Reduzir as perdas de água é, para o município de Melgaço, o maior desafio ao nível da automação de serviços no setor das utilities. Adicionalmente, a edilidade tem como meta manter um tarifário acessível, garantido a mesma qualidade. Para tal está a ser feito um investimento de 430 mil euros, que contribuirá para uma redução das perdas reais de 5,44%, com impacto em mais de quatro mil munícipes. “No âmbito do conceito de smart cities, queremos desenvolver mecanismos que reduzam as perdas de água para valores mínimos e continuar a investir na automação e na gestão inteligentes das redes, através da instalação de mais pontos de medição de pressões, caudais, níveis e monitorização do controlo de qualidade da água”, diz o município de Melgaço.A utilização de tecnologia ao nível dos sistemas de abastecimento de água e saneamento é essencial, na medida em que permite, em tempo real, conhecer o comportamento dos equipamentos associados a esses sistemas, e melhorar a sua eficiência.

Atualmente, a Câmara de Melgaço utiliza sistemas de telemetria com recurso a sensores de níveis e de volume em reservatórios e ETAR e pontos de controlo instalados na rede de abastecimento de água e saneamento que comunicam com o Sistema de Controlo e Aquisição de Dados (SCADA). “Este SCADA permite a obtenção de dados que são processados automaticamente, sendo gerados alarmes em caso de divergência em relação a valores previamente parametrizados”, explica a Câmara de Melgaço.

Mobilidade elétrica em alta

Em 2040, e de acordo com um estudo da Accenture, estima-se que o número de veículos elétricos seja mais elevado do que os veículos de combustão (em 2025 serão dez milhões). Com esta expectativa, a consultora acredita que as oportunidades de negócio serão inúmeras e que tendem a crescer a cada ano. Só para o setor das utilities, a Accenture prevê oportunidades de negócio na ordem dos dois mil milhões de dólares, que terão ganhos significativos ao agruparem serviços em função das necessidades dos proprietários de veículos elétricos. Por um lado, estas empresas terão a missão de fornecer a energia para os veículos elétricos e, por outro, poderão tirar partido de serviços adicionais, com margens de lucro mais elevadas, como a gestão integrada de energia de veículos elétricos em casa, aplicações de carregamento remoto, processamento de pagamentos e até financiamento para a compra dos veículos.

As soluções de mobilidade elétrica são, aliás, as mais procuradas pelos municípios que procuram dar os primeiros passos no conceito de smart city. Sónia Fontoura confirma: “as mais procuradas são as relacionadas com a mobilidade dos cidadãos nas áreas urbanas, um segmento que incorpora especialidades como mobilidade elétrica, gestão de estacionamento, gestão de tráfego de veículos, vigilância por vídeo, etc”. Restará às operadoras do setor das utilities tirar o melhor partido das soluções tecnológicas que lhes permitem diversificar a oferta e tornar o modelo de negócio mais apetecível e competitivo. Reinvenção será a palavra de ordem.

Quatro tendências que aceleram a transformação digital nas utilities

  • Omnicanalidade - Hoje, é essencial que as empresas mantenham a comunicação com o cliente através de vários canais. Além das lojas físicas, o consumidor privilegia cada vez mais os canais alternativos – aplicações, acesso online ou telefone com atendimento tradicional ou chatbot – para não ser obrigado a deslocar-se.
  • API - Com o recurso a API, a integração entre sistemas é mais simples, assim como a sua gestão. Os serviços prestados são, desta forma, mais eficientes, com menos falhas, e maior rapidez de resposta.
  • Chatbots e assistentes pessoais - Para ajudar a esclarecer dúvidas ou para resolver questões mais simples, a utilização de chatbots ou de assistentes pessoais virtuais, que recorrem à inteligência artificial, é uma tendência em todos os setores de atividade. Nas empresas de utilities também começa a ser comum encontrar estas interfaces conversacionais com vista a um atendimento personalizado.
  • Comunidades de produção e consumo - Com a liberalização do autoconsumo no setor energético, começam a surgir algumas comunidades assentes em microgrids. Reguladas pelo Decreto-Lei 162/2019, e parte do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), estas comunidades têm por objetivo aumentar o consumo de energia a partir de fontes renováveis, com a participação dos cidadãos (ver Projeto Green Valley, no texto principal).
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