Depois da quebra nas lojas, fruto da pandemia, o retalho está em mudança acelerada para conseguir dar resposta aos desafios do futuro. Resiliência e continuidade dos negócios, descarbonização e sustentabilidade, inovação e digitalização são os pilares essenciais para a recuperação do setor e para o seu crescimento num mundo que será diferente depois da COVID-19
Uma grande incerteza ao futuro. Esta é a realidade do setor do retalho em Portugal – e no mundo – que, mesmo antes da pandemia, já se encontrava em transformação. Vivia-se, então, uma fase inicial do retalho digital, com alguns dos players a avançar e a consolidar estratégias de venda multicanal. Com a chegada da COVID-19, o setor teve, não só, que continuar o seu percurso de transformação digital, mas que acelerar, sob pena de aumentar ainda mais as perdas que se verificaram nas lojas físicas. Segundo o estudo “Perspetivas de crescimento através da digitalização”, realizado pela Sage e revelado em fevereiro deste ano, o comércio de retalho contava com perdas na ordem dos 23%, comparativamente a 2019, com as regiões do Minho e do Algarve a registar as maiores quebras. As principais razões, aponta o estudo, estão relacionadas com a falta de presença online, em 45% das PME, ou com o baixo nível de digitalização que têm. Apenas uma minoria – 10% – têm uma forte presença digital, com negócios que já representam metade do volume de vendas. Este é um cenário que, não obstante os bons exemplos de transformação e de resiliência, conta com enormes desafios de agilidade e de inovação. Os consumidores alteraram muito o seu comportamento e hábitos de compra, o que coloca novos e relevantes desafios às empresas, que têm que adaptar-se. “O efeito da digitalização na economia, acelerada pela mudança drástica de hábitos e de métodos causada pela pandemia, irá conhecer efeitos a curto prazo nas mais variadas áreas de negócio”, aponta Pedro Celeste, professor associado na Católica Lisbon School of Business & Economics. Para o professor, “rapidamente olharemos para trás como se tivéssemos transitado de era, uma vez que os efeitos do 5G (e já se fala do 6G) não conhecerão fronteiras nem setores de atividade que lhe possam resistir”. Assim será também noutros setores como banca, saúde, ciência, agricultura, trabalho, ambiente, segurança, transporte, política e vida empresarial em geral. A velocidade de adaptação é também fundamental num setor em que a tecnologia está a mudar a forma de produzir, desde o chão de fábrica, bem como a transformar as cadeias logísticas. E, neste momento, o risco de disrupção nas cadeias de abastecimento é um cenário com fortes probabilidades de se concretizar. “Isso leva a que qualquer marca deva, nesta fase, ponderar investimentos para conhecer melhor os hábitos de consumo”, afirma Edgar Barreira. A adaptação aos desafios da sustentabilidade, exponenciados pela pandemia, é outra prioridade que, na opinião do account manager da Esri Portugal, será obrigatório para as empresas que queiram ser bem-sucedidas. Teste de stress nas cadeias logísticasA adaptação forçada a um canal de vendas digital, que muitos retalhistas não tinham, foi a escolha ‘obrigatória’ num momento em que ninguém conseguia antecipar os reais impactos da pandemia. O comércio eletrónico foi a alternativa mais viável para quem se viu a braços com lojas encerradas e horários reduzidos, tendo deixado de ser uma conveniência para se transformar numa necessidade de sobrevivência. “Em tempos de quarentena, onde o acesso aos produtos do dia-a-dia obrigou os consumidores a restrições e à procura das melhores opções, foram várias as empresas (muitas micro e desconhecidas) que souberam compreender o sentido de oportunidade de estar perto dos seus clientes”, salienta Pedro Celeste. Desde o retalho alimentar, à informática, equipamento de escritório, jardinagem, construção ou equipamento desportivo, “foi possível encontrar excelentes exemplos de desempenho assinalável, percebendo o contexto e mostrando níveis de eficiência surpreendentes”, acrescenta. Contudo, a transformação dos canais de venda a montante gerou algum stress e capacidade de adaptação nas cadeias de distribuição e logística, a jusante. Victor Moure, Country Manager Portugal na Schneider Electric, dá o exemplo da Amazon que, apesar da dimensão, foi obrigada a contratar 175 mil novos colaboradores, ou da Target, que registou um aumento de 300% nas suas vendas em abril de 2020. “Estes são apenas alguns exemplos do stress ao qual as cadeias de abastecimento estiveram sujeitas”, salienta. Este ‘boom’ nas entregas de produtos manteve-se ao longo do ano passado e, pelo menos, até meados de 2021, em especial durante o primeiro trimestre deste ano durante e logo após o confinamento de janeiro. Agora, e apesar de alguma estabilização, continua a existir uma procura elevada nas vendas online de determinados produtos que, acreditam os especialistas, irá manter-se no futuro. “As compras online estão a proliferar porque são de fácil pesquisa, operacionalidade e sugerem preços competitivos”, diz Pedro Celeste. No fundo, a compra de alguns itens acabou por tornar-se uma commodity, e as pessoas já não querem perder tempo em deslocações desnecessárias. No entanto, alerta o professor, “isso só responsabiliza ainda mais as empresas, que devem otimizar a experiência no ponto de venda físico”. Esta, acredita, irá cada vez mais guiar-se pelo apuramento dos sentidos (por exemplo cheiros em lojas de beleza, livrarias, decoração, alimentares, sabonetes, perfumarias, etc…). “É, pois, muito natural que vejamos surgir lojas cada vez mais especializadas em nichos de mercado, porque serão estas as que estarão mais próximas de poder marcar a diferença pela positiva”. A otimização da estratégia multicanal será fundamental no pós-pandemia e no futuro. Para sobreviver e prosperar os retalhistas terão que apostar em otimizar a sua oferta omnicanal e também a sua cadeia de abastecimento. “O consumidor quer ser tratado de forma igual em todos os canais, e isto é um desafio para as empresas e para os consumidores”, defende Pedro Pimentel. Na opinião do diretor-geral da Centromarca, os retalhistas que souberem fazer esta adaptação conseguirão recuperar e crescer após a pandemia. No entanto, terão sempre que garantir que prestam serviços de comércio eletrónico de excelência e de que, nas suas lojas, o cliente desfruta de uma experiência de consumo que o satisfaz. “É fundamental centrar a estratégia no omnicanal, incluindo um forte investimento na diversificação dos canais de venda, seja planeando lojas pop-up, seja levando as encomendas à casa das pessoas, ou disponibilizá-las para levantamento em loja”, acrescenta Edgar Barreira. E para isso é necessário otimizar. “Otimizar neste contexto significa isso mesmo, pensar na sustentabilidade e rentabilidade”, reforça o responsável da Esri. Ainda assim, há outros fatores a ter em conta. Garantir que as lojas online funcionam e são fluidas no seu uso, exemplifica Edgar Barreira, é também garantir que se retém o cliente na transição entre o paradigma da compra em loja, com o novo paradigma da compra online. “Os programas de fidelização que anteriormente eram aplicados, são-no também nas compras online e o estudo sobre a dinâmica das compras no território é assim mantido como ferramenta fundamental no planeamento dos próximos investimentos”. Na Schneider Electric, empresa especialista em soluções digitais de energia e de automação, o grande desafio na pandemia foi garantir que todo o ecossistema de parceiros conseguia avançar para a digitalização urgente dos seus processos de venda e distribuição. “Explorámos diferentes nichos de mercado a partir dos serviços de suporte remoto que oferecemos aos nossos clientes, e alguns dos nossos distribuidores colaboraram connosco neste sentido”, explica Victor Moure. A empresa apostou em programas duradouros, com uma avaliação diferente do tradicional, e acompanhados de alguma promoção, “para reforçar os laços num momento em que tivemos de nos distanciar”. O objetivo, explica o responsável da Schneider em Portugal, foi ajudar o setor a consolidar a sua importância e a não perder demasiado numa época tão difícil. A ajuda a distribuidores e parceiros traduziu-se na disponibilização de conteúdos, ferramentas digitais, campanhas de marketing, promoções, análises e relatórios, bem como modelos interativos para tornar as campanhas mais produtivas. “Quisemos proporcionar visibilidade, aumentar o tráfego das empresas e, consequentemente, as suas vendas, e acreditamos que foi o caminho certo”, reforça. A caminho do retalho digitalDe acordo com um estudo recente da McKinsey sobre o futuro do retalho e as tendências para o mercado português, ao longo da próxima década, metade das atividades do retalho poderão ser automatizadas, conclusão que vai ao encontro da opinião de Pedro Celeste. “Embora pareçam silenciosas, tecnologias como a inteligência artificial e a automação estão a percorrer o seu caminho de forma galopante em muitas indústrias, o que faz repensar o que serão as profissões de amanhã”, diz. O professor recorda que quase todos os setores de atividade e as suas cadeias de valor estão a ser transversalmente preenchidos com o domínio destas matérias. E, segundo a McKinsey, esta automatização dos processos no retalho terá impacto, quer nas lojas, quer na cadeia logística, mas também no mercado de trabalho que dispensará trabalhadores menos qualificados. “A pandemia veio tornar mais urgente a adoção de medidas que façam face às novas tendências de consumo”, alertava, na altura, a consultora. Certo é que, como conclui o estudo, espera-se um crescimento do e-commerce na ordem dos 7% até 2025, o dobro da expectativa para o setor retalhista, com previsões de 3,7%, o que reforça a urgência na integração entre a experiência online e offline. Mas as tecnologias poderão ser úteis não apenas para melhorar a experiência de compra para o consumidor, mas também para torná- -la diferenciadora. Tecnologias como a realidade virtual ou a realidade aumentada, “serão úteis para alimentar a notoriedade das marcas, gerar interesse em conhecê-las e motivar mais compras”, acredita Pedro Celeste. Mesmo em negócios B2B, acrescenta o professor, “esta é uma área em franco desenvolvimento pois permite, por exemplo, dar a conhecer o dia-a-dia de um processo fabril, os testemunhos diretos de clientes ou a visualização de um processo relativo a uma encomenda”. Victor Moure partilha de opinião semelhante. “As tecnologias emergentes, como a IoT, o 5G, a Inteligência Artificial e a Realidade Aumentada, entre outras, podem contribuir de forma muito significativa para um melhor desempenho das cadeias de abastecimento, para a transformação digital da indústria e para a concretização dos objetivos globais de sustentabilidade”. Já para Edgar Barreira, os gémeos digitais, ou em inglês digital twins, começam também a ser abordados, seja no processo construtivo de uma loja, seja no planeamento do recheio de uma loja. “Daqui nasce a necessidade de compreendermos quais os padrões de movimentação dentro das lojas e a sua relação com a colocação dos produtos”. O account manager da Esri garante que os alicerces para essa necessidade já existem, estando a empresa pronta a aplicar estas soluções em Portugal. “Naturalmente, reconhecemos que não podemos abordar o tema desligados de outros sistemas existentes, mas facilita muito o facto de termos integração com várias tecnologias que resolvem de forma menos eficiente alguns destes desafios”, salienta. A otimização das cadeias de produção e de abastecimento beneficiarão também com a disponibilização de ligações Wi-Fi 6 e com o 5G, que permitirão garantir capacidade, segurança e flexibilidade, para que as máquinas estejam totalmente conectadas e para que todos os sensores consigam partilhar dados em tempo real e otimizar a produção. “O 5G vem trazer a hiperconectividade, o que vai acelerar tremendamente o volume de transação da informação”, diz Edgar Barreira. Em jeito de exemplo, explica o account manager, imagine-se que uma marca de retalho com presença nacional pretende conhecer em tempo real tudo o que são transações de pagamentos, e vê-las representadas no território. “Temos tecnologia que vai permitir não só recolher essa informação, como resumi-la estatisticamente por tipo de consumidor ou tipo de produto, para suportar o conhecimento do diretor de uma marca, que está em trânsito no território para reunir com um coordenador de zona que tem a responsabilidade por um conjunto de lojas”. Isto vai acelerar a decisão e pode ser usado, por exemplo, no caso de um qualquer tipo de acontecimento abrupto e inesperado, que esteja na iminência de causar algum tipo de disrupção na operação. Também o Edge Computing, acrescenta Victor Moure, poderá ser utilizado para processar todas estas informações, melhorando o ciclo de vida das máquinas e otimizando os processos. “As TI devem ser implementadas mais perto do local de utilização, permitindo uma maior produtividade e eficiência, nomeadamente, na transformação nos ambientes industriais”. O desafio da sustentabilidadeO tema da sustentabilidade ganhou uma expressão ainda maior durante a pandemia. De acordo com um estudo da revista Fast Company, 90% dos consumidores garante preferir adquirir os seus produtos a empresas com comportamentos sustentáveis, que pratiquem preços semelhantes. O mesmo acontece, revela a mesma pesquisa, com 70% dos colaboradores, que indicam preferir trabalhar numa empresa com boas práticas ambientais e sociais. “É hora de priorizar a sustentabilidade e a transformação digital nos negócios, pois as empresas que não conseguirem realizar esta transformação ficarão de fora”, afirma Victor Moure. Na opinião do responsável da Schneider Portugal, as empresas e os respetivos CEO devem envolver-se ativamente e procurar um parceiro que os ajude a navegar esta revolução tecnológica e a abrir caminho a um futuro mais ‘verde’. A empresa, que obteve recentemente uma distinção na Global Sustainable Supply Chain Summit 2021 pela sustentabilidade nas suas cadeias de abastecimento, acredita que um dos fatores que a distingue no mercado é a estratégia global e de cadeia de abastecimento centradas na sustentabilidade. “Só nos últimos três anos, conseguimos uma redução de mais de cem mil toneladas de emissões, e no final do ano passado 80% das nossas operações já eram alimentadas por energias renováveis, capacitadas pelas nossas próprias tecnologias e tirando partido de contratos de aquisição de energia”, explica Victor Moure. Ajudar os parceiros e clientes a percorrer o caminho da sustentabilidade é também, na opinião do country manager, um fator crítico de sucesso para a Schneider Electric. “Entre 2018 e 2020, através de um conjunto de soluções, ajudámos os nossos clientes a economizar 134 milhões de toneladas de CO2; e no primeiro trimestre de 2021 essa poupança alcançou já os 276 milhões de toneladas”, reforça. Mas esta vertente é apenas uma entre os desafios e prioridades que se impõem ao setor do retalho e das cadeias de abastecimento. “É preciso uma recuperação resiliente”, acredita Victor Moure. A vida e o trabalho serão diferentes no pós-pandemia, há uma procura diferente e novas expectativas, para além de novos requisitos de flexibilidade, agilidade, responsabilidade, empatia, transparência e propósito que não existiam antes. “Enfrentaremos muitas mudanças nos próximos meses e anos, e precisamos de agir rapidamente para reativar a economia global”, reforça o responsável. O cenário está traçado, e a estratégia para as empresas e para o setor terá obrigatoriamente que passar por três pilares essenciais: resiliência e continuidade dos negócios, sustentabilidade e descarbonização, e inovação e digitalização. |