No setor do retalho e da distribuição, a transformação digital já provou ser mais do que uma estratégia conduzida pela tecnologia. Esta mudança traduz-se numa nova forma de trabalhar, assente num modelo em que a agilidade é fundamental, mas que exige igualmente uma alteração de mentalidade, forma de estar e de pensar. Reinventar para crescer e para garantir a competitividade é a chave para o sucesso
Em 2020, a pandemia de COVID-19 foi a pedra no charco para acelerar uma transformação digital, em curso há alguns anos. À semelhança do ditado popular que diz que ‘a necessidade aguça o engenho’, o fenómeno que paralisou o mundo e que deixou milhões de pessoas fechadas em casa ao longo de vários meses, contribuiu para uma velocidade de transformação nunca vista. Balanço feito, quase três anos depois, no setor do retalho e da distribuição, muita coisa mudou e a disputa pelo cliente é mais feroz do que nunca. No entanto, neste campeonato que procura cativar e fidelizar cada vez mais clientes, a arma da diferenciação e da personalização é um dos argumentos dos retalhistas que procuram ir ao encontro do que procuram consumidores cada vez mais informados e exigentes. Mais do que a batalha dos preços, a atratividade do retalho joga-se na oferta dos produtos mais saudáveis, sustentáveis e socialmente responsáveis. Mas, com um novo obstáculo – a inflação crescente - no caminho, que desafios se colocam agora neste setor, um dos mais importantes da sociedade? Para Gonçalo Lobo Xavier, o próximo ano será muito complexo e, acredita o diretor-geral da APED (Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição), é muito importante assegurar a competitividade das empresas do setor. A perda de poder de compra dos consumidores que, além da inflação, se veem a braços com a subida das taxas de juro do crédito à habitação são dois ingredientes que, conjugados, podem afetar as empresas do setor. Do lado dos retalhistas, desafios como o aumento do custo da energia e a disrupção que ainda se verifica em algumas cadeias de abastecimento, obrigarão a um constante jogo de cintura para não penalizar as receitas. A criatividade e a agilidade proporcionada pela tecnologia são algumas das ferramentas que os retalhistas terão à sua disposição para ultrapassar a difícil missão de sobreviver a 2023. Tecnologia mantém-se prioridadeCom a lição da pandemia bem interiorizada, grande parte das empresas do retalho e da distribuição mantêm o investimento em tecnologia no topo das suas prioridades, e encaram esta aposta como uma estratégia de médio prazo. Segundo um estudo da Brother, realizado em parceria com a empresa de estudos de mercado Savanta, 75% dos inquiridos assumiu ter acelerado a adoção de tecnologia para dar resposta à pandemia e destes, 47% garante que continuará a investir nos próximos cinco anos.
Tornar o negócio o mais eficiente possível é igualmente uma prioridade para os retalhistas inquiridos pela Brother. A gestão da operação na vertente logística, por exemplo, é cada vez mais essencial para a satisfação dos clientes que compram online e que esperam que as suas encomendas cheguem com a maior rapidez. Este pode, aliás, ser um fator determinante na escolha de um retalhista em detrimento de outro. De acordo com o estudo da Brother, os retalhistas estimam que 68% dos clientes valoriza a rapidez nas compras online, e que para 36% a entrega no próprio dia é obrigatória. Esta exigência obriga os comerciantes a apostar em software de gestão de armazéns cada vez mais sofisticados em tecnologias de rastreabilidade que permitam conhecer, em tempo real, o trajeto das encomendas, em picking automatizado ou robôs que garantam a operação 24 horas por dia. Adicionalmente, a busca pela personalização e por um serviço ao cliente verdadeiramente diferenciador nos canais digitais, está a motivar muitos retalhistas a introduzir soluções tecnológicas que contribuam para o melhoramento da experiência do consumidor. No retalho de moda, por exemplo, muitas lojas disponibilizam nas suas plataformas digitais a possibilidade de experimentar a roupa de forma virtual ou, em lojas de decoração, a possibilidade de verificar como fica um móvel ou uma peça decorativa na casa do cliente. Trata-se de incorporar soluções de Realidade Virtual e Aumentada, e de soluções de visualização 3D que, em simultâneo, permitem melhorar a experiência do consumidor também na loja física. Cada vez mais, refere o estudo da Brother, os clientes procuram complementar o processo de compra física com a vertente digital, e vice-versa. Esta aposta na personalização é, segundo o estudo “Next in Personalization Report”, da consultora McKinsey, uma escolha de muitos retalhistas que estão preocupados em criar jornadas de cliente, baseadas em plataformas de dados em que a Inteligência Artificial (IA) representa um dos papéis principais. De acordo com esta fonte, 71% dos clientes gostariam de ter uma abordagem personalizada das marcas, uma estratégia que para os retalhistas representa maiores taxas de crescimento. O estudo da McKinsey revela precisamente que os retalhistas que atualmente mais crescem estão a gerar cerca de 40% das suas receitas por esta via. Mas, o que verdadeiramente importa para atrair e reter o cliente é, na opinião de Frederico Santos, “garantir sempre que identificamos a melhor tecnologia para endereçar o problema concreto que queremos resolver (seja na experiência de cliente, seja na otimização dos nossos processos) e não encontrar um problema para aplicar a tecnologia ‘da moda’”. O Diretor de Inovação e Transformação Digital da Sonae MC recorda que hoje existem muitas tecnologias emergentes que já estão a ter impacto significativo nas experiências de consumo e nos processos operacionais que as suportam. “Desde a inteligência artificial, passando pelas soluções de RPA ou inovações suportadas em blockchain, um operador de retalho que se queira manter competitivo não pode ignorar o impacto de qualquer uma delas ou de várias outras que poderíamos enumerar”. Adicionalmente, diz ainda Frederico Santos, é cada vez mais estrutural e impactante trabalhar ativamente nas soluções de integração entre os diferentes sistemas. “A capacidade de tirar partido, muitas vezes de forma experimental (e, como tal, com investimento limitado), destas novas tecnologias, está muito ligada a quão simples é integrar as novas experiências e soluções com toda a máquina tecnológica que temos em funcionamento para suportar o negócio”. Múltiplos canais, cliente únicoA integração crescente dos diferentes canais de venda é uma tendência que ganhou relevância no retalho durante a pandemia, mas que continua a revelar-se uma aposta certeira para as marcas. No entanto, mais do que multiplicar canais, os retalhistas têm de garantir que o cliente é tratado como se fosse o único. “O fundamental é considerarmos sempre que, independentemente do canal utilizado, o cliente é único”, reforça Frederico Santos. Para o responsável de inovação da Sonae MC, é exatamente esta caraterística que reforça a necessidade absoluta de foco no cliente, “sendo muito importante mantermos a comunicação com o nosso público e estarmos presentes na vida dos nossos clientes, onde quer que eles se encontrem, qualquer que seja o momento que atravessam e as necessidades que tenham”. Da sua experiência, a satisfação dos clientes na marca que representa dá força a esta convicção. “O nível de adesão dos clientes às soluções tecnológicas do Continente é crescente, muito associado às (também crescentes) suas necessidades de conveniência”, explica. O responsável revela ainda que é crescente a utilização conjunta e cruzada, em que, por exemplo, o cliente compra online na app Continente, levanta a encomenda numa loja física, e faz uma devolução nessa loja. A busca incessante pela inovação na Sonae MC, e de que fala Frederico Santos, levou a marca a inaugurar, há pouco mais de um ano, a loja Continente Labs, a primeira de uma marca europeia que utiliza um conceito tecnológico onde não são precisas caixas ou qualquer registo ou scan dos produtos durante ou após a compra. Para entrar e fazer compras basta ter instalada a app Cartão Continente (com Continente Pay e fatura eletrónica ativos). Os clientes podem, depois de entrar na loja, retirar os produtos das prateleiras e sair da loja, sem terem de parar em qualquer ponto ou passar por qualquer caixa. Depois recebem confirmação de transação e fatura eletrónica através da app, no seu telemóvel. Nos bastidores da loja Continente Labs, e espalhados pelos seus 150 metros quadrados, estão 20 quilómetros de cabos de rede, 230 câmaras no teto e 400 sensores de prateleiras. A tecnologia, baseada em IA, é da startup portuguesa Sensei e permite que o cliente seja permanentemente acompanhado por machine vision, sem reconhecimento facial, de forma a perceber quais os produtos que retira das prateleiras e se estes são devolvidos ou colocados noutro local da loja. Mais recentemente, a marca da Sonae MC lançou a app Quico Continente, um serviço de entregas rápidas – em menos de 30 minutos – tornando-se o primeiro retalhista alimentar a desenvolver um serviço próprio de instant delivery que permite reunir, numa única encomenda, produtos de mercearia, e refeições take away dos supermercados da marca. Para já, o serviço está apenas disponível no centro do Porto, mas chegará a Lisboa no início de 2023. Com a massificação na utilização do 5G, Frederico Santos espera novos desafios e oportunidades, quer nos processos de interação com cliente quer no redesenho e otimização dos nossos processos operativos. “Não será uma revolução instantânea, mas vai, com certeza, ser um fator transformador no retalho alimentar na próxima década”. Sustentabilidade e talentoO bem-estar pessoal, mas também a sustentabilidade nos processos de produção são preocupações de cada vez mais consumidores a nível global, mas também em Portugal. De acordo com um estudo da Católica Lisbon, dois em cada três portugueses pretende investir entre dez e 50% do seu rendimento em bem-estar e em produtos cuja cadeia de abastecimento seja sustentável. Esta consciência sobre a sustentabilidade está a criar desafios adicionais aos retalhistas que, além da digitalização dos seus processos, têm igualmente de preocupar-se em incluir as melhores práticas de sustentabilidade económica, social e ambiental nos seus produtos. No retalho alimentar internacional existem exemplos desta transformação como é o caso dos supermercados IGA, no Canadá, que comercializam produtos hortícolas produzidos nos telhados das suas lojas. Por cá, no hub criativo do Beato, no terraço de um dos edifícios está a nascer uma horta urbana, com dois mil metros quadrados, que estará aberta às empresas residentes e à comunidade para que ali possam cultivar produtos, quer para venda, quer para consumo próprio. Uma das áreas deste espaço está já reservada para a Super Bock, que ali cultivará o lúpulo necessário à produção da cerveja artesanal que sairá de uma pequena fábrica também inserida no hub do Beato. Também nestes projetos, a tecnologia terá um papel preponderante, com inclusão de sistemas de rega inteligentes ou de sistemas energéticos mais eficientes. A introdução crescente de robôs, com diferentes tarefas, está igualmente a transformar as cadeias de retalho, um pouco por todo o mundo, e a ir ao encontro de um terceiro desafio que é o do talento. A escassez de recursos em todos os setores é um problema que também afeta o retalho, o que significa que a crescente automação de lojas e de cadeias de abastecimento e de distribuição, não só ajudará a dar resposta a este problema, como permitirá que os recursos sejam mais especializados e dedicados a tarefas criativas e menos rotineiras. Mas estes desafios exigirão elevados investimentos por parte dos retalhistas. Aliás, e de acordo com o estudo “Transforming the EU Retail & Wholesale Sector”, promovido pelo EuroCommerce e pela McKinsey, serão necessários cerca de 600 mil milhões de euros de investimento no setor retalhista e grossista da União Europeia até 2030, com vista a concretizar a transformação digital, de sustentabilidade e de competências e talentos. Este é, segundo o relatório, o montante adicional que, em cada ano, poderá chegar a 1,6% das receitas, cujo objetivo será contribuir para dar resposta às crescentes exigências dos consumidores, à descarbonização e ao crescimento do comércio eletrónico. Retalho financeiro contribui para transformação do setorOs desafios da digitalização, descarbonização e sustentabilidade não se aplicam, contudo, apenas ao retalho alimentar. Por detrás de toda a tecnologia de suporte ao comércio eletrónico e às lojas online, está o igualmente importante retalho financeiro. Aqui, a transformação digital tem sido feita em dois sentidos: o de facilitar a vida e a interação com os clientes bancários, e o de dar suporte aos comerciantes e aos seus negócios cada vez mais digitais. Um dos exemplos de mudança no paradigma bancário é o do Grupo Crédito Agrícola.
Em parceria com a SoftFinança, o grupo bancário iniciou um processo de transformação digital há vários anos, antes mesmo dos desafios adicionais impostos pela pandemia. Luís Teodoro, administrador da SoftFinança destaca a nova geração do ATM B24+, que permite depósitos e levantamentos em modo reciclado, de notas e moedas – o dinheiro dos depósitos é conferido e validado de forma automática, sendo colocado nos mesmos cacifos de onde sai, o que permite reduzir um conjunto de custos, entre os quais a manutenção, os tablets iPad que permitem aos clientes aceder a um conjunto de funcionalidades ou a gestão de atendimento que permite gerir de forma eficiente a equipa, como funcionalidades que garantem maior sustentabilidade à operação bancária, contribuindo para uma maior satisfação dos clientes. Neste projeto, a SoftFinança faz igualmente a gestão da rede de ATM do grupo e da sua rede de canais digitais, com mais de 700 pontos em todo o país. A parceria com a Sonae Finantial Services e o cartão Universo é outro dos casos de estudo da SoftFinança no retalho financeiro. A tecnológica desenvolveu toda a vertente de relacionamento com o cliente do Cartão Universo, disponíveis através da app do cartão, que incluem um conjunto de funcionalidades que permitem ao utilizador fazer toda a gestão das suas compras, desde a adesão ao cartão, de uma forma totalmente digital e desmaterializada. |