Transformação digital é o enabler, e inteligência artificial a ‘cola’ e o acelerador das tecnologias na saúde, capaz de mudar por completo o diagnóstico clínico. PRR pode ajudar neste caminho, mas falta velocidade
Acabar com as listas de espera, melhorar a qualidade da gestão e entregar melhores resultados aos cidadãos, garantindo um acesso mais rápido e com menor burocracia. Esta podia ser a lista de desejos de qualquer utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas, mais do que isso, pode ser o cenário do sistema que suporta a saúde em Portugal em formato digitalizado e apoiado pela tecnologia. Um caminho de transformação que foi acelerado pela pandemia, mas que, apesar de muita evolução ao longo dos últimos três anos, continua com uma maratona por terminar. O investimento, muitas vezes visto como a ‘chave’ para os problemas, tem sido lento, mas o valor previsto para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a área da saúde pode ajudar. “O PRR da Saúde tem afetos cerca de 300 milhões de euros para o desenvolvimento da transformação digital no Serviço Nacional de Saúde, e o SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde) tem uma agenda muito importante em curso”, diz José Mendes Ribeiro. Mas, na opinião do economista e especialista na área da saúde, falta velocidade a todas as iniciativas, “fixando um compromisso através de um roadmap detalhado, de conhecimento público, com prazos de entrega para cada resultado”, como recomenda. Ainda assim, acredita, “estamos no bom caminho”.
Esta visão otimista de evolução é, aparentemente, partilhada pelos utentes do SNS inquiridos pelo Índice de Sustentabilidade na Saúde, realizado pela NOVA IMS, com o apoio da farmacêutica Abbvie. A oitava edição do estudo, que foi apresentada em abril, revela que os portugueses reconhecem ao SNS uma eficácia ligeiramente superior à das edições anteriores (73,5 pontos numa escala de 100), identificando a sua importância e impacto no estado de saúde e na qualidade de vida. Quando lhe é pedido que olhem para a última década, a perceção é também de evolução positiva, especialmente no que diz respeito à introdução de melhores e mais inovadores meios de diagnóstico. Ainda assim, a satisfação e confiança dos utentes diminuiu na generalidade dos parâmetros avaliados, e que vão das consultas em centros de saúde e hospitais, ao atendimento em urgências, internamentos ou exames de diagnóstico. Recuando até ao início de 2022, um outro estudo, desta feita na perspetiva de executivos e gestores, com maior foco na área da saúde, concluía que o sistema de saúde português estava pronto para a transformação digital que, então, já acelerava com o empurrão da pandemia. O ‘Estudo sobre os serviços digitais no setor da saúde em Portugal’, realizado pela Deloitte, com o apoio da Roche e do MUDA, destacava igualmente as medidas implementadas, com destaque para a prescrição eletrónica, reconhecida como uma inovação importante por 87% dos inquiridos, seguida do Registo de Saúde Eletrónico Nacional do Utente, destacado por 59%. No entanto, já há cerca de ano e meio, os desafios identificados eram aqueles que, na opinião de José Mendes Ribeiro, se mantêm, apesar de alguma evolução. Segundo o estudo da Deloitte, os inquiridos destacavam o RGPD e a partilha de dados (39%), a cibersegurança (37%), e o financiamento (28%). Já as prioridades na transformação identificadas pelos participantes do estudo apontavam para a interoperabilidade dos dados como fator essencial na mudança (67%), o registo de saúde eletrónico (65%), e a inteligência artificial no suporte à decisão clínica, que inclui a eficiência de processos e experiência de paciente (57%). É preciso combinar ferramentasMas, para atingir os pressupostos da digitalização e a concretização dos desejos de utentes, profissionais de saúde e gestores não existe uma receita única. É preciso combinar um conjunto de tecnologias, que ‘conversem’ umas com as outras de forma eficiente. Numa entrevista recente à IT Insight, Ricardo Constantino defende que não existe um tipo de tecnologia que seja por si só disruptivo, “tem de ser a utilização combinada de vários tipos de tecnologia”. Na opinião do Head of Health and Public Sector da NTT Data Portugal, são várias as tecnologias que têm representado uma mais-valia no setor, desde os assistentes conversacionais, numa vertente mais administrativa, à robotização, numa ótica clínica, e que permitem automatizar e tornar mais eficientes determinadas tarefas. O responsável da NTT Data destaca ainda a existência de repositórios de informação clínica padronizados que, acredita, “têm sido uma mais- -valia, na medida em que permitem criar repositórios centrais e separar as soluções de recolha de informação da solução que guarda de facto a informação numa perspetiva clínica”. À semelhança de José Mendes Ribeiro, Ricardo Constantino defende que a Inteligência Artificial (IA) terá um papel essencial entre as diversas ferramentas digitais. “Vejo a IA como um acelerador de todos os processos de transformação digital”, afirma o economista. Por exemplo, acrescenta, “ao nível do diagnóstico clínico tem contribuições verdadeiramente transformadoras. O caso da interpretação de resultados de imagiologia, o apoio ao diagnóstico analítico (análises clínicas e estudo de amostras e tecidos na anatomopatologia) são avanços notáveis”. O responsável da NTT Data reforça que a IA terá um impacto muito relevante na forma como serão prestados os cuidados de saúde nos próximos anos porque tem um “papel transversal e é uma mais-valia no setor da saúde”, seja na utilização associada a assistentes conversacionais e speech-to-text, seja para a identificação de doenças e diagnóstico, investigação de medicamentos e apoio à decisão clínica. Preparar os profissionais
A introdução de tecnologias inovadoras ao serviço da saúde é fundamental para uma melhor e mais rápida prestação de cuidados. No entanto, a formação atempada e adequada dos profissionais do setor é essencial para que todos retirem maior partido do potencial destas ferramentas. Programas formativos, à semelhança do ‘Tour for Life’, um projeto a nível europeu desenvolvido pela Medtronic, especializada em tecnologia para o setor da saúde, são fundamentais para acelerar a adoção das diferentes tecnologias, com a vantagem, neste caso, de os profissionais de saúde não terem de deslocar-se. Portugal recebeu o camião da ‘Tour for Life’ no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra (CHUC), polo Hospital Geral (Covões), depois de ter passado por outros países como Bélgica, Suíça, França, Reino Unido, Irlanda e Espanha. Depois da Península Ibérica, o camião segue viagem para Itália, Alemanha e países nórdicos. Nesta ‘tour’, o objetivo é facilitar a formação de profissionais de saúde nas mais recentes técnicas de cirurgia cardíaca, permitindo-lhes testar novas tecnologias em primeira mão e sem saírem do hospital. “Esta é uma iniciativa que torna acessíveis os últimos avanços nesta especialidade da medicina aos profissionais de saúde”, revela o CHUC em comunicado. Todos os profissionais de saúde do centro hospitalar tiveram a possibilidade de utilizar as ferramentas e recursos inovadores, desde treinos teóricos e práo cticos para cirurgiões especializados até simuladores para replicar cirurgias reais. “A utilização de uma unidade móvel como base, que carrega todo o equipamento necessário e fica estacionada no próprio hospital, proporciona agilidade, conforto e economia de tempo”, reforça o centro hospitalar. Entre as técnicas que puderam ser realizadas no camião encontram-se todas as relacionadas com os principais problemas cardíacos: substituição de válvulas, reparação cirúrgica de anomalias do músculo cardíaco, ou ablação cirúrgica com radiofrequência. A experiência inclui ainda simuladores de última geração que permitem testar as últimas tecnologias e terapias. Tecnologia é suporte para melhores resultados
Maior precisão e menor risco são fatores que, na saúde, reforçam a importância de uma constante atualização e investimento em tecnologia. Numa conferência recente, o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, reforçou precisamente a importância da tecnologia para o reforço da qualidade do SNS e da prestação dos serviços que oferece. O ministro exemplificava com a aposta em braços robóticos que apoiam os cirurgiões, tornando as operações mais precisas e menos invasivas. Para já, disse o governante, existem três equipamentos destes em hospitais de Lisboa e Porto, mas o objetivo é reforçar a sua aquisição. Trata-se, disse, “de investimentos que permitem poupar milhões de euros ao SNS”. Mas os braços robóticos não são exemplo único. Cada vez mais hospitais públicos apostam em equipamentos que reforçam as suas especializações e que podem fazer a diferença. Ao Hospital de São Francisco Xavier, que pertence ao Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), acaba de chegar um sistema de navegação cirúrgica de última geração para melhorar a qualidade das cirurgias à coluna. “Este é o primeiro serviço de ortopedia num hospital público em Portugal a investir nesta tecnologia, que permite operar com maior rigor e segurança”, explica João Gamelas. O diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental salienta que esta era uma ambição do serviço há já algum tempo, e que através desta aposta em tecnologia de ponta, a unidade de saúde consegue garantir um tratamento mais inovador, mesmo em patologias ortopédicas mais complexas. “Há uma melhoria da precisão, diminuição do risco, nomeadamente na cirurgia da coluna vertebral, proporcionando à equipa mais-valias na avaliação e preparação cirúrgica, bem como na execução técnica dos procedimentos necessários”. Com esta tecnologia, o hospital assegura uma melhor resposta a todos os casos, nomeadamente aos mais urgentes, reduzindo a margem de erro, e garantindo a melhor e mais rápida recuperação para os doentes. “Este é um investimento que trará um grande retorno para o SNS, ao reduzir os custos associados à cirurgia, ao tempo de recuperação pós-operatório e às equipas envolvidas”, afirma José Miguel Sousa, ortopedista especializado na cirurgia da coluna vertebral no hospital. Ao ajudar a planear a abordagem antes e durante a cirurgia, permitindo que a equipa de especialistas crie, armazene e simule a progressão ao longo de uma ou mais trajetórias cirúrgicas, o sistema de navegação reforça a ação do cirurgião. Possibilita que haja um maior rigor, aumenta a segurança e a precisão, a par de uma diminuição drástica da exposição do doente e das equipas envolvidas à radiação (raios-X), quando comparada com a abordagem clássica.
Outro exemplo de inovação que reforça a precisão e a segurança das cirurgias ao crânio e coluna vem do Serviço de Neurocirurgia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO). Em janeiro deste ano, a unidade de saúde adquiriu um equipamento de imagem 3D, intraoperatório, integrado com o sistema de navegação, ambos de última geração. Trata-se de uma tecnologia de navegação que permite obter imagens 3D em tempo real e em vários planos, reduzindo a exposição do doente e dos profissionais à radiação. Entre as vantagens do equipamento destaca-se a redução das complicações tanto relativamente à coluna (primeiros procedimentos ou de revisão) como ao crânio (epilepsia ou doença de Parkinson), diminuindo igualmente os tempos de internamento e os custos associados à cirurgia, e contribuindo para e o aumento da eficiência na gestão de recursos do hospital. Na perspetiva dos profissionais, esta tecnologia de imagem e de navegação 3D permite o acesso a imagens claras e precisas durante os procedimentos, enriquece a informação de que o cirurgião dispõe a cada momento da cirurgia, dando-lhe uma visão maximizada e melhorada da anatomia local, mesmo em casos mais complexos. O caminho para a transformação continua, com os ingredientes fundamentais para o seu sucesso a manterem-se. Infraestrutura tecnológica, dados e interoperabilidade são, para José Mendes Ribeiro, a ‘espinha dorsal’ desta mudança para o digital e os pontos essenciais a trabalhar para que, com o apoio da IA enquanto acelerador, concretizar o objetivo central do SNS – prestar os melhores cuidados de saúde, com qualidade, rapidez e eficiência. |