Blockchain já passou há muito do hype. Ainda que se continue a associar blockchain às criptomoedas, e em particular a bitcoin, as redes descentralizadas vão para lá de apenas e só uma moeda digital, tal como explicou Michael Casey no palco principal do DES 2019
O primeiro slide mostra dois gorilas. "Não é muito normal começar uma palestra sobre blockchain e apresentar uma imagem com gorilas, pois não?", pergunta Michael Casey, CEO da Streambed, advisor para a iniciativa Digital Currency Initiative do MIT Media Lab e senior lecturer no MIT Sloan School of Management. Mas a imagem tem um pretexto: falar de confiança. Partilhamos cerca de 98% do nosso ADN com os gorilas, mas, segundo Casey, são os humanos a dominar o mundo e não outro animal não é a inteligência em si, mas porque "conseguimos contar histórias, chegar a um consenso sobre uma coisa e construir uma ideia. Este processo, de construção de consenso sobre uma verdade, é a base da civilização". Esta verdade, explica, não tem necessariamente de o ser, mas sim o facto de enquanto sociedade acreditarmos nessa verdade que chegamos a um consenso. Simultaneamente, temos um problema de desconfiança e é a resolução desta falta de confiança que permite à sociedade evoluir de tribos para aldeias, para cidades e, em última análise, para Estados soberanos. Um problema, duas palavrasAo longo dos tempos, a sociedade tem colocado a resolução desta falta de confiança em instituições. No sistema financeiro, estas instituições são os bancos. Casey nota que "o dinheiro é um sistema de informação, um meio de comunicar se alguém está em dívida". Os bancos tornaram-se num local central onde confiamos o nosso dinheiro. Desde que Médici criou uma das primeiras instituições financeiras que o mundo tem vindo a crescer: o período do Renascimento e a revolução industrial são apenas dois exemplos. "Os bancos também causaram problemas. São muito importantes e muito poderosos na sociedade. O grande problema com um modelo centralizado tem apenas duas palavras: uma é Lehman e a outra é Brothers", refere o CEO da Streambed. Com a atenção da sala, Casey explica que não foi apenas este banco, mas também todos os outros que tiveram a sua responsabilidade na crise que se viveu em 2008. Neste contexto, o problema passa também por o público confiar neste tipo de identidades para proteger os seus dados, as suas dívidas e tudo o que deles dependem, mas os bancos terem escondido as informações mais relevantes do público. A crise de 2008 mostrou a dimensão do problema de confiar numa identidade única que tem todos os nossos dados. "Foram perdidas fortunas, milhares de pessoas perderam os seus trabalhos", relembra Michael Casey. Os bancos gastam uma grande quantidade de dinheiro em contabilistas para ter a certeza que os valores estão, de facto, corretos. No final do dia, no entanto, é preciso confiar nestes contabilistas para assegurar que todos os valores de uma determinada pessoa ou instituição estão certos. Uma resposta para este "custo da confiança" são as redes descentralizadas e modelos de blockchain uma vez que passa a existir um registo da verdade em várias localizações. As implicações destas redes descentralizadas não se aplicam apenas às instituições financeiras, mas sim a um pouco de todos os negócios que existem atualmente. Para estes modelos de blockchain, as instituições têm de partilhar as 'suas verdades'. As informações estarão disponíveis para todos dentro da rede o que irá obrigar, naturalmente, a novos modelos de negócio. As empresas que baseiam os seus modelos de negócio em guardar de forma privada os seus dados vão ter de se adaptar a uma nova realidade que estará prestes a chegar. BenefíciosMichael Casey mencionou alguns dos benefícios de uma rede descentralizada e, principalmente, de um modelo semelhante a blockchain (não necessariamente as redes de blockchain que existem atualmente). Em Porto Rico, está a ser testado uma rede baseada em smart contracts que permite que quem é afetado por fenómenos naturais possa ter acesso a dinheiro para reconstruir as suas casas. Através deste piloto, quem quiser ajudar pode emprestar dinheiro a quem foi afetado e, assim, ter algum tipo de garantia de que vai reaver o seu dinheiro. Um outro benefício apontado relaciona-se com o consumo público de energia. Casey dá como exemplo a Daimler que está a testar camiões que viajam de forma sincronizada, um atrás do outro. Através de um modelo de blockchain, é possível perceber a poupança que o camião que está atrás consegue alcançar, através do cone de vento, onde irá gastar menos energia, e pagar uma parte desse consumo ao camião da frente. DesafiosMas, como em muitos casos, nem tudo é um mar de rosas. Existem vários desafios que precisam de ser endereçados antes de ser possível pensar em disponibilizar redes de blockchain em larga escala. O primeiro problema é a escala. "É difícil de escalar e ainda tem um grande custo para transacionar grandes volumes de dados". Depois, o user experience "é mesmo muito mau". Os utilizadores ainda não sabem exatamente como podem guardar as suas chaves de forma segura, correndo ainda o risco de os utilizadores serem atacados e verem as suas credenciais de acesso roubadas. "A coordenação é muito difícil, é um problema coletivo", refere Michael Casey. A dificuldade passa por como se juntam as pessoas a uma rede destas, principalmente porque existem pessoas que se aproveitam da falta de informação para terem mais-valias que não deviam. Também a regulação é difícil de criar neste momento uma vez que "blockchain não se encaixa nos modelos atuais". No entanto, por muitos desafios que existam com blockchain ou modelos semelhantes, Michael Casey acredita que este é o caminho que levanta um número enorme de possibilidades para um mundo cada vez mais conectado. |