Não existem dúvidas do que pode ser alcançado com as tecnologias de indústria 4.0 – resta então saber em que ponto vamos e como as empresas podem acompanhar a transformação digital da indústria
A máquina a vapor, a eletrificação, a automação – cada revolução industrial no nosso passado introduziu não apenas uma maior eficiência e produtividade nos processos de fabrico, como também uma total mudança de paradigma na forma como os bens são produzidos, em como o trabalho é feito, na cadeia de valor e na própria sociedade. A Indústria 4.0 não é exceção – aqui, o eixo da revolução está nos dados, os quais, através de tecnologias como a Internet of Things e ferramentas avançadas de analítica preditiva, introduzem um nível de eficiência, automação e agilidade sem precedentes. Contudo, refere Jorge Portugal, diretor-geral da COTEC Portugal, a indústria não se resume apenas à produção – está também a montante, na conceção de produtos de desempenho superior, e a jusante, em toda a componente de logística e serviços de pós-venda aos clientes. “Os industriais perceberam que não se podem focar apenas no fabrico, porque as margens no chão de fábrica são cada vez mais apertadas. A rentabilidade está também a montante e a jusante, na conceção de produtos e processos produtivos mais eficientes”. Estamos também, acrescenta, a assistir a uma reorganização das cadeias de produção. Aqui, os estágios iniciais da pandemia trouxeram à luz o trabalho que há a fazer: as cadeias têm de ser menos globalizadas, mais próximas do consumo, mais diversificadas e mais redundantes – mesmo que, para tal, se tenham de tornar menos eficientes. É necessário reinventar os processos de negócio com base em dados para automatizar as decisões e reinventar como se faz o negócio – não só os próprios processos de fabrico, como também na prevenção de falhas, previsão de riscos, e na própria gestão e pós-venda. “As indústrias que estão a investir na transformação digital podem passar, rapidamente, de um contexto competitivo e difícil a conseguir posicionar- se com diferenciação no mercado”, garante Victor Moure, Country Manager Portugal, Schneider Electric. “O momento de digitalizar é agora – não devemos pensar apenas a longo prazo, mas sim na urgência em que nos encontramos neste momento”. O Estado da NaçãoApesar da indústria 4.0 ser ainda uma área em desenvolvimento, com recurso ao que são consideradas novas tecnologias, já existem, inúmeros casos de sucesso que denotam uma evolução clara da indústria global neste sentido. Aqui, segundo Jorge Portugal, o país compara- -se bem – tanto até que Portugal será o país parceiro da edição de 2022 da Hannover Messe, a maior feira mundial da indústria. “Não somos um grande mercado de exportação, mas temos empresas ágeis, dotadas das ferramentas e conhecimentos para resolver problemas complexos – e isto começa a ser visível lá fora”. Contudo, ainda existe trabalho a ser feito. Jorge Portugal realça a importância do crescimento em escala: “A maior parte das empresas trabalha numa escala ineficiente, e precisam de crescer – nomeadamente através da inovação. E isto torna- -se muito complicado, porque não só é preciso planear o negócio de hoje como também o de amanhã, o que é exigente a nível da liderança e gestão de recursos. É necessário conseguir gerar recursos excedentes para reinvestir no processo de inovação, de forma a que se possam manter a par das alterações do mercado e de súbitas crises como a que se verificou no ano passado”. Isto foi, mais uma vez, realçado pela disrupção experienciada durante a pandemia, durante a qual as empresas que já tinham automatizado e digitalizado os seus processos foram capazes de reagir com maior rapidez e flexibilidade. “As indústrias em que a produção é controlada e monitorizada, e o tratamento desses dados é explorado, são as mais capazes de reagir aos desafios e mudanças de uma forma rápida e com sucesso”, reforça Victor Moure. Tiago Fernandes, Senior Solution Advisor, SAP Portugal, aponta também para uma falta de cultura de inovação nos processos de negócio. “Culturalmente somos bastante avessos ao risco e à experimentação e este tipo de abordagens tecnológicas implica um processo de gestão de mudança bem desenhado e comprometido com a visão estratégica da organização”. O caminho da revoluçãoComo qualquer processo de digitalização, esta é uma jornada cujo sucesso requer um planeamento deliberado. Segundo Tiago Fernandes, o planeamento da digitalização dos processos industriais implica trabalhar três pilares importantes: o apoio da gestão de topo no que toca à definição da visão estratégica e desenho da cadeia de valor onde a organização está inserida; a integração dos dados industriais recolhidos durante as atividades produtivas em sistemas corporativos; e a definição de uma matriz de indicadores de desempenho que guie as organizações na melhoria de processos. “A principal armadilha assenta na perceção que as organizações consideram que os problemas estruturais do negócio devem ser resolvidos com ferramentas tecnológicas”, alerta ainda Tiago Fernandes. “Isso muitas vezes traduz- se na criação de silos tecnológicos dentro das empresas, o que origina informação desintegrada e sem qualquer valor para as equipas de gestão”. Como tal, conclui o responsável, o principal fator crítico de sucesso implica desenvolver uma política integrada de recolha de informação em toda a cadeia de valor, que permita suportar os processos de decisão. Guilherme Ramos Pereira, Diretor Executivo da DSPA, por outro lado, reforça a importância a de criar uma cultura de dados: “a empresa tem de ter, ou estar realmente empenhada em ter uma cultura empresarial, de produção, de fabrico e de ou gestão, que tenha os dados no centro da equação”. Segundo Jorge Portugal, a principal prioridade é sempre o alinhamento entre estratégia de mercado e a estratégia de inovação da empresa – seja de processos de produção, produtos e serviços, cadeia de abastecimento – sob pena de, a longo prazo, perderem competitividade. Há que pensar qual é o nosso posicionamento no mercado, o que temos de fazer para manter a relevância, de que forma o podemos fazer, e que recursos vão ser necessários para o alcançar. “Quando não sabemos para onde vamos, qualquer caminho serve – e isto é muito arriscado quando falamos em investimentos na inovação”, alerta o responsável. Para além de objetivos claros, é necessário ter uma perspetiva a médio e longo prazo não só do plano de negócio como até do próprio investimento em novas tecnologias, o qual deve ser faseado, tendo sempre em mente a evolução tecnológica e o próprio processo de aprendizagem da empresa. “Muitas destas tecnologias precisam de business cases. O primeiro passo é definir os problemas a resolver, o atual nível de maturidade digital, quais são as tecnologias que nos vão ajudar, e se o custo que vão ter hoje é competitivo”. Naturalmente, muitas destas tecnologias serão muito mais baratas dentro de cinco anos. Há que ter então em consideração se vale a pena investir agora, se se deverá investir mais tarde, ou inclusive se não compensa automatizar apenas parte dos processos. “Por exemplo, na indústria de assemblagem, em muitos casos compensa mais ter pessoas no chão de fábrica no fim de linha, para dar um acabamento de alto valor que não seria possível com máquinas, ou apenas um seria com um investimento muito acima da mão-de-obra”. Outro fator a ter em consideração é que, com o atual ritmo de desenvolvimento tecnológico, a obsolescência das tecnologias é também extremamente rápida. “Temos de ser prudentes ao ponderar business cases, ter em conta o horizonte de amortização dos investimentos em inovação, e fazê-lo por fragmentos – nenhuma revolução é feita de um dia para o outro”, refere Jorge Portugal. É, assim, necessário planear a digitalização dos processos por troços, com objetivos, riscos, e valor de investimento específicos. Ao ultrapassar os riscos à volta destes respetivos troços, a empresa vai ganhando capacidades e maturidade digital ao longo do tempo, ficando assim mais capacitada para fazer frente às fases seguintes. “É importante fracionar o investimento em fases, porque o melhor antídoto para a obsolescência é a flexibilidade – poder mudar de direção caso apareça uma tecnologia mais eficiente, mais barata, e mais adequada ao nosso estágio de desenvolvimento”. “Os custos associados à digitalização e os conhecimentos tecnológicos que esta requer costumam ser vistos como barreiras, mas é possível implementar essa transformação pouco a pouco, com uma prova de conceito ou valor”, concorda Victor Moure. Só assim é possível evitar a “rasteira” dos custos iniciais e, simultaneamente, visualizar facilmente os resultados que poderão obter com determinada estratégia de digitalização. “Havendo cultura de dados, havendo foco e competências, e havendo a percepção da necessidade de serem desenvolvidos pilotos, o trilho para o sucesso estará mais claro para a organização”, acrescenta Guilherme Ramos Pereira. “Testados os processos, é pôr em prática e aplicar o conhecimento adquirido no refinamento de projetos e processos, escalando-o no sentido da digitalização e automação dos processos industriais, de negócio e de gestão”. Jorge Portugal refere ainda a necessidade de fazer uma melhor gestão e proteção da propriedade industrial – ativos intangíveis produtos da inovação, como o conhecimento e as patentes, que não são capitalizados, refletidos no balanço, e muito menos protegidos. Alerta, também, para a importância de alcançar um bom equilíbrio entre capitais próprios e capitais alheios de forma a sustentar o investimento na inovação a prazo. “A pior coisa que pode acontecer é ficar sem 'combustível' a meio do caminho porque tive um ano mau e não gerei os resultados necessários para reinvestir e deixar o investimento a meio”, conclui Jorge Portugal. “Da mesma forma que é preciso flexibilidade, é também necessário ter capacidade de investimento a médio e longo prazo, seja a nível de capitais próprios, alheios, ou apoios públicos”. Por último, mas certamente não em último, a questão do talento é sempre um tema central de qualquer processo de digitalização. Como refere Guilherme Ramos Pereira, importa dispor, não só das tecnologias adequadas e de uma estratégia sólida, como também de um corpo de profissionais – ou recurso a apoio externo – com conhecimento sobre estas temáticas, tanto em áreas específicas dos processos industriais, gestão ou negócio, como também em diversos patamares de competências, conhecimento e experiência. “Hoje em dia, em Portugal, o maior problema das empresas não é a tecnologia – são as pessoas. Não é o CEO ou o dono da empresa que promove a transformação do negócio, é quem está a fazer a gestão dos processos no dia a dia”, concorda Jorge Portugal. “A estratégia de atração e retenção de talento é extremamente importante”. |