Qualificar e requalificar o capital humano nacional, não perder o comboio das infraestruturas com o atraso no 5G, e resolver problemas de regulação são fatores determinantes, e prioridades que o país deve abraçar no imediato, sob pena de perder atratividade e competitividade. A receita de Rogério Carapuça para que o país não permaneça na cauda da Europa
Em março de 2020 escreveu uma carta aos colaboradores da APDC, na qual antecipava um período de três a quatro anos para extinguir a pandemia, à luz dos ensinamentos da História e da cronologia da gripe espanhola, que permaneceu ativa entre 1917 e 1920. Fê-lo por uma questão de gestão de expectativas da equipa. Um ano depois, a evolução da pandemia de Covid-19 seguia as suas previsões. Os pontos positivos da pandemia do século XX são aqueles que agora dificultam o trabalho de quem a combate – a população é cinco vezes maior, e as deslocações entre os vários pontos do globo, muito mais frequentes. Por outro lado, o que em 1917 era impossível – comunicar e trabalhar à distância – é agora uma realidade, com a ajuda das ferramentas digitais que contribuíram também para o rápido desenvolvimento da vacina. No entanto, como reconhece Rogério Carapuça, continua a ser inevitável a espera e a adaptação a uma nova realidade. “A APDC tinha de fazer um processo de transformação completo do seu modelo de negócio, porque estava naquele conjunto de entidades em que o modelo de negócio estava mesmo ameaçado”, diz o presidente da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC). Numa conversa informal com a IT Insight, o responsável da APDC falou sobre os desafios para a instituição que dirige e para o setor que endereça, da importância da digitalização dos negócios, da estratégia do 5G, e da urgência de requalificar os recursos nacionais para preparar um futuro mais competitivo para o país. Que balanço faz deste ano e meio de pandemia e, também, da resposta dos operadores às novas necessidades dos consumidores e do mercado? Temos quatro tipos de negócios: os que ficam impossíveis durante três/ quatro anos, os que sobrevivem, mas com transformações muito profundas, os que até resistem porque consegue assegurar a continuidade do negócio, e aqueles que aumentam o seu negócio por existir a pandemia como, por exemplo, as entidades que permitem que nós tenhamos software para trabalharmos em formato de videoconferência. No entanto, a pandemia expôs ainda mais as nossas fragilidades enquanto país, nomeadamente na utilização das ferramentas digitais básicas e na qualificação do capital humano. Segundo um relatório da Comissão Europeia, dados de 2020, Portugal está em 24.º e 21.º, respetivamente (em 28 porque ainda inclui o Reino Unido). Já nas dimensões de conetividade, existência de serviços públicos online, e integração das TI nas empresas, conseguimos o 12.º, 13.º e 16.º, respetivamente. Isto é muito importante porque, quando acentuamos a discussão sobre disponibilidade das coisas, estamos a acertar no sítio errado, porque nem as que temos usamos bem. O problema está, de facto, na utilização. Em termos internacionais, os estudos de 2021, e após um ano de pandemia, mostram que teremos avançado três ou quatro anos na transformação digital, face ao que aconteceria se a pandemia não existisse. O que significa que esta transformação já era um processo exponencial. Uma das grandes mudanças foi o teletrabalho, e o papel das tecnologias de informação e comunicação (TIC) foi central na manutenção do negócio de muitas empresas, mas também na manutenção das relações sociais durante este período. Sem isso, a nossa resistência à pandemia seria parecida com 1917, piorado pelo facto de a população ser cinco vezes maior. Não só os operadores de telecomunicações, mas também os fornecedores de software, os integradores, os que permitem que os serviços sejam realmente construídos, e os próprios media, foram absolutamente essenciais durante este ano, e continuarão a ser nos próximos. Com esta transformação que acelerou, será que melhorámos nos indicadores de utilização da internet que referiu? Há indicação que sim, ou seja, nós sabemos que a utilização de comércio eletrónico era bastante reduzida em Portugal e que terá incrementado substancialmente. Mesmo antes da pandemia, cerca de 37% das pessoas compravam online. Agora estima-se que sejam cerca de 60%. Mas sim, porque face a uma necessidade, as pessoas tiveram que pegar nas poucas competências que tinham e transformá-las e usá-las, e aqueles que não as tinham, rapidamente trataram de as ter para que pudessem usar e tentar resistir à pandemia. Sabemos que cerca de 27% dos portugueses não tinham, antes da pandemia, competências digitais nenhumas. Outros 50% tinham apenas competências digitais básicas, e só 23% é que tinham competências com alguma robustez. Ou seja, uma pandemia, como outro evento qualquer, faz com que as pessoas tenham de se desenrascar para que possam continuar a viver e a usar coisas. Mas a nossa infraestrutura e serviços foi fundamental que para que isso pudesse acontecer. Na sua opinião, Portugal terá a capacidade de cumprir as metas definidas pela União Europeia, em termos de literacia digital, até 2030? Obviamente que estando nós na cauda relativamente a esse aspeto do capital humano, é muito mais difícil do que para os outros. Ou seja, quem já tenha competências digitais básicas na sua população na casa dos 50%, chegar aos 80% é uma coisa. Para quem tenha 27% da população sem competências, e 50% que tem apenas muito básicas, é muito mais difícil chegar a essa meta. No fundo, estando nós numa corrida, estamos na cauda do pelotão nessa matéria e queremos chegar a um dos primeiros lugares. Isso é muito difícil porque a corrida é ao mesmo tempo para todos e, portanto, o esforço que temos que colocar nessa matéria a nível nacional é muitíssimo superior ao que é nos outros países. E temos que o colocar a todos os níveis: das próprias pessoas, das empresas, e das administrações públicas. Ao nível das pessoas, ainda temos vários segmentos: o das pessoas que estão agora a entrar na escolaridade, e temos que ter o cuidado de reforçar os programas e os conteúdos educativos de forma que comecem a aprender competências digitais básicas desde o início da sua vida escolar, o que implica transformar também e aumentar muito as competências digitais dos professores. Depois temos a população ativa, onde temos de ter programas de reskilling e upskilling para garantir que as pessoas vão continuando a aprender ao longo da vida, sobretudo nestas áreas digitais, mas também em todas no geral. E depois os seniores, pessoas já reformadas, mas que precisam para continuar a sua vida, para comunicarem com outros, e precisam de ter essas competências digitais. Será que estes hábitos, impostos pela pandemia, vão ficar? Certamente muitos vão manter-se. Por exemplo, o teletrabalho, que é algo que associamos a trabalhar a partir de casa, mas pode não ser. E isto relança todo um outro mundo de questões que é, por exemplo, poder trabalhar numa empresa estrangeira, sedeada no estrangeiro, sem sair de Portugal. Assim como para outros, se Portugal estiver bem do ponto de vista, não só de controlo da pandemia, mas também de tirar partido das nossas qualidades enquanto país, poderão vir trabalhar para cá para empresas que nem estão cá. Mas tudo isto vai alterar os nossos hábitos de trabalho, de ensino, de socialização, mesmo para além do que seja um controlo mais eficaz da pandemia. Em termos de desafios atuais, quais é que diria que são os principais desafios que vê, quer para a APDC, quer para o setor? Para o setor temos um desafio de aquisição de competências digitais, para as empresas e para ajudar a população, porque o nosso setor é importante devido ao tipo de empresas que tem, telecomunicações, media e serviços ligados à tecnologia. É importante salientar isto porque, sem competências digitais, não teremos produtividade, porque o digital está em tudo. Sem resolvermos este problema, não há solução para os outros problemas. Em segundo lugar, é muito importante que Portugal não perca o pioneirismo e a capacidade de inovação que sempre teve neste setor ligado às telecomunicações. Aliás, eu relembro que nos anos 80, e a APDC nasceu em 1984 precisamente para discutir esse problema, era preciso digitalizar a rede de comunicações portuguesa que na altura era analógica, e isso foi feito até através de fundos comunitários a partir de 1986, e foi conseguido em tempo recorde. Portugal passou a ser pioneiro em termos de inovação em todas as ondas tecnológicas que se seguiram, nomeadamente nas comunicações fixas, depois na banda larga associada às comunicações fixas, e nas várias comunicações móveis que se seguiram. Portanto, Portugal esteve sempre à frente, quer a nível de cobertura da infraestrutura que conseguiu construir, quer nos serviços, e há hoje ainda muitos países onde não é possível pegar no sinal de televisão e voltar para trás para ver o que deu na semana anterior. Portanto, todo esse tipo de serviços foi introduzido em Portugal em primeiro lugar, de forma pioneira relativamente ao mundo, e isso nós sempre conseguimos ter uma infraestrutura a tempo de o fazer a tempo de todos os avanços e transições tecnológicas que tivemos desde essa altura. Estamos hoje a criar uma situação que nos coloca em grande desvantagem no arranque do 5G. Temos um leilão que qualquer dia faz um aniversário. Isto também está a colocar um entrave a nível de desenvolvimento porque é preciso resolver primeiro o leilão para poder haver frequências distribuídas, e para os operadores começarem a prestar os serviços: enquanto não terminar não se pode fazer nada disso, não podemos ter a hipótese de ter as empresas a inovar à volta dessa tecnologia e temos os outros a ganhar avanço face aquilo que nós temos. Portanto, algo desse tipo nunca poderia ter sido desenhado com regras que levassem a poder demorar o tempo que fosse preciso, nomeadamente nesta escala. Ligado a esse tema, obviamente, todos os temas de infraestrutura, no caso, continuar a renovar a nossa infraestrutura, também agora com o aparecimento do 5G, e continuar com a banda larga que temos. Não é na infraestrutura que temos um problema face aos outros países, no entanto não podemos perder o comboio para a geração seguinte. Os operadores obviamente vão fazer o possível para fazer o roll-out da infraestrutura o mais rápido que for possível depois do leilão estar conseguido. De qualquer das formas, obviamente que estamos a perder tempo. As condições do leilão também não são as melhores… As condições do leilão são desencorajadoras para os operadores do ponto de vista do seu desenvolvimento. Porque há duas questões: uma é o atraso, e a outra é ser atrativo, ou não, para os operadores investirem. Uma das coisas que criticámos nas regras para a atribuição das frequências do leilão foi que um operador que seja novo vai ter obrigações de cobertura extremamente baixas ao início, coisa que não aconteceu com os outros, e essas vão ser cumpridas, essencialmente, e porque é assim que é economicamente viável, nas grandes cidades. Porque para ter 25% de cobertura no princípio, só se consegue nas grandes cidades. Portanto, isso não vai resolver os problemas no interior. Vai acrescentar oferta num sítio em que já há, e permite aos novos entrantes solicitar o roaming nacional, ou seja, a utilização da rede dos outros, em condições que se não chegarem a acordo, pode ser o regulador a fixar. De que valeu investir em ter uma boa rede, se agora os outros podem usá-la? E como é que poderemos ultrapassar este impasse? Agora é difícil de ultrapassar porque quando foram fixadas regras que não permitem fazer isto rápido, tentar alterá-las a meio é outro problema. Depois ainda temos outros temas, que também são relevantes para o setor como, por exemplo, a lei das comunicações eletrónicas que está neste momento a ser discutida na Assembleia da República, depois de uma proposta do Governo relativamente à transposição de uma diretiva comunitária nessa matéria. A discussão é agora sobre definir um teto mais baixo para os contratos de fidelização, o que pode introduzir outro problema porque vai limitar o acesso das pessoas a uma infraestrutura, numa altura em que precisam dela para desenvolver as suas capacidades digitais. Se tivéssemos que elencar, em termos de competências digitais, as duas principais lacunas, quais seriam? Essa é uma pergunta muito interessante, porque nem tudo o que parece competências digitais é, e não é fácil elencar essas competências digitais, mas vamos aos exemplos. Quando falamos em competências digitais e estamos a falar, para já, em competências digitais básicas, estamos a pensar em conseguir usar coisas, ou seja, enquanto utilizador ser capaz de utilizar aquilo que a tecnologia põe à nossa disposição. Depois, se estivermos a pensar em pessoas que queiram dar um maior contributo à sociedade nessa matéria, quer sejam profissionais do setor ou de outros setores, já estamos a falar de competências mais técnicas, portanto, o saber programar, saber ter um raciocínio computacional aplicado às várias disciplinas, o saber inglês… Portanto, são tudo competências que temos que dar aos jovens desde início, e quando digo início, é desde o primeiro ano do básico. Para a população escolar e também para os profissionais e, no caso destes últimos, podemos reconverter profissionais de outros setores onde não há tanto emprego, para poderem trabalhar no setor das tecnologias digitais onde as pessoas precisam de emprego, quer ao nível das qualificações superiores, quer ao nível das competências equiparadas ao secundário. Todo o conjunto de alterações, quer ao nível dos programas escolares, quer ao nível do reskilling e upskilling da população ativa, tem que ser feito. Depois, ainda há um terceiro tipo de competências que são relevantes no mundo digital como, por exemplo, ser capaz de distinguir se uma coisa que foi escrita na internet é um facto ou não. É necessário preparar a próxima geração para essas questões todas, porque teoricamente todos temos o poder de produzir informação, e temos que ter as ferramentas para o fazer. É também esse o propósito da iniciativa upskill a que a ADPC se associou? Sim. O objetivo é formar pessoas para o nosso setor usar, liderado pela necessidade das empresas, e este é também um ponto muito importante. Esta revolução que temos que fazer em termos de competências digitais tem que ser liderada pela procura e não pela oferta. Isto é, as empresas sabem que profissionais precisam, o que orienta quem forma para formar estes perfis. O nosso upskill dá um passo à frente e é nesse sentido que é um programa muito inovador, porque as empresas que se comprometeram com o programa, comprometeram-se a contratar 80% das pessoas que disseram que precisavam, e garantindo um determinado salário. Isto tornou o programa extremamente interessante e, da primeira vez que o realizámos, tivemos mais de 5.500 candidatos para 400 vagas porque o programa dava uma garantia de emprego muito elevada. E decorreu durante a pandemia? Este programa foi integralmente desenvolvido durante a pandemia. Todo o trabalho de preparação, de configuração de oferta, de recrutamento dos candidatos foi online. Depois já foi possível fazer entrevistas aos candidatos mais qualificados em presencial, e já houve aulas presenciais, embora algumas tivessem de passar para remoto, também consoante as necessidades da pandemia. Agora estamos a preparar a segunda edição, com aquilo que aprendemos na primeira, porque há sempre coisas que se aprendem, e uma delas é que as empresas têm de estar o mais próximas possível da definição das matérias e da forma como são lecionadas. Portanto, isto é uma amostra, uma contribuição para aquilo que o país precisa de fazer em larga escala, não só para coisas que se relacionem com tecnologias digitais, mas para outras tecnologias completamente diferentes também. No congresso da APDC, o Ministro Pedro Nuno Santos, referiu que o governo pretende que Portugal seja um ponto geoestratégico da economia de dados, dadas todas as circunstâncias deste processo e os atrasos, isto não é uma meta muito ambiciosa? Acho que ele tem razão. Acaba por ser aquilo que disse há pouco. Em tudo o que são serviços digitais, Portugal devia estar na primeira linha da inovação e na primeira linha da captação de investimento estrangeiro porque, como sabemos, há pouco capital e temos que atrair investimento estrangeiro para essas áreas. Estou de acordo com o objetivo, quer seja a economia de dados, ou a economia das comunicações e dos serviços e de tudo o que é digital. Para isso, é preciso termos uma população com mais qualificações digitais, é preciso não perdermos o comboio da infraestrutura, é preciso resolver os problemas de regulação. Portanto, eu acho que ele tem razão, mas agora temos que fazer. |