José Manuel Paraíso, Country Manager da Kyndryl, explica, em entrevista, como nasceu a empresa, os desafios que setores como a banca ou retalho têm do ponto de vista tecnológico e como os estão a ultrapassar
Como surgiu a Kyndryl, a nível global e em Portugal? Qual é o vosso âmbito e enquadramento? Atualmente, a Kyndryl é uma empresa com uma dimensão importante, com 90 mil colaboradores em todo o mundo, e cerca de mil em Portugal. Fez um ano em novembro de 2022 e surge de um spin-off daquilo que eram os infraestructure services da IBM. Em Portugal, não tem nada de diferente de outros países do mundo, apenas algumas diferenças enquanto operação. Gosto de dizer que a Kyndryl é uma startup; tem pouco mais de um ano, mas tem uma experiência de mais de 20 anos, daquilo que a IBM já tinha neste negócio. A decisão foi tomada em outubro de 2020, nessa altura ainda nos chamávamos NewCo dentro da IBM, ainda não tínhamos nome, e depois começámos a fazer um trabalho enorme em variadíssimas coisas. Entretanto, algures em 2021, foi dado o nome e em novembro foi cotada na Bolsa de Wall Street, no índice Dow Jones, e a sua atividade começou aí. Tivemos três grandes tarefas, que foram o meu foco total e absoluto. Primeiro, criar os processos e toda a organização para que a Kyndryl pudesse funcionar; parece fácil, mas não é, e foi um processo mundial. Depois, os dois grandes focos foram a transferência das pessoas, aquelas que a IBM decidiu que passariam para a Kyndryl, e a transferência dos contratos dos clientes. Foi obviamente um processo difícil, sem dúvida, mas que correu muito bem. Passámos todas as pessoas que estavam em scope, e também todos os contratos de clientes, alguns muito grandes, com clientes que estão dentro de mercados regulados, e tiveram de cumprir o seu compliance, tudo isso foi muito complicado com uma empresa que estava a aparecer e que, mesmo com o legado que tem, não deixava de ser uma empresa nova. A missão é fazer a operação, a gestão e a modernização das infraestruturas tecnológicas críticas de clientes. É esse o nosso foco. Anunciámos mais recentemente a Kyndryl Consult, que é algo também muito importante e uma evolução daquilo que já fazíamos em projetos tecnológicos, mas com um enquadramento mais estratégico, de assessoria para os clientes, no sentido de os aconselhar naquilo que é a sua transição do ponto de vista de infraestruturas tecnológicas para suportar a transformação digital. Isto é complexo. Se fosse fazer uma empresa nova, era muito fácil, ligava-me à cloud. As empresas mais antigas e grandes têm o seu legacy, que é complexo e muito valioso. Acho que às vezes quando se fala do legacy parece que estamos a falar de algo que é penoso, mas é supervalioso o que lá está. Tem, em muitos casos, um valor acumulado de muitos anos de inteligência, diferenciou claramente o negócio das empresas e é preciso cuidar dele de um ponto de vista estratégico muito importante e ver como é que ele pode evoluir. São aplicações que têm muito valor de negócio acumulado e as infraestruturas têm de acompanhar essa transformação e essa renovação e é a isso que nos dedicamos. Quando falamos em infraestruturas críticas estamos a falar basicamente do quê?
Estamos a falar de servidores aplicacionais, de dados, de storage dos dados, de networking, de toda a infraestrutura que permite que as aplicações funcionem a todo o momento. Atualmente, não nos passa pela cabeça que não esteja disponível a qualquer hora do dia acedermos a qualquer serviço que precisamos, e, se não estiver, passamos para outro, isso é imediato. Garantir que todas estas infraestruturas estão disponíveis permanentemente, as aplicações, que assentam em infraestrutura, servidores, storage, é cada vez mais complexo porque parte destas infraestruturas estão em data centers, outra parte em clouds públicas, e isto tudo tem de funcionar de uma forma interligada, que seja absolutamente transparente para quem usa. Podemos pensar em todos os serviços que enquanto consumidores acedemos e que têm de funcionar sempre, e o não funcionamento pode causar uma disrupção muito grande na economia, não é só na vida das pessoas. José Manuel Paraíso, Country Manager da Kyndryl Existe alguma alteração de prioridades nas organizações e empresas relativamente a esse tipo de serviços? Trabalho nisto há 40 anos e ao longo do tempo senti muitas alterações de prioridades, mas focando no mais recente, penso que o mais disruptivo foi durante a pandemia. Nessa altura, as prioridades do IT mudaram radicalmente de um dia para o outro. A grande prioridade foi dar devices às pessoas para que pudessem trabalhar a partir de casa e garantir que as redes de comunicação estavam disponíveis para isso. Ajudámos muitas empresas a fazê-lo. E depois a segurança. Foi uma prioridade que de repente apareceu. Foi um choque, uma disrupção que aconteceu, e de repente mudaram completamente as prioridades do ponto de vista do IT. Mas de uma forma mais continuada, sim, nota-se perfeitamente. Se for um pouco mais atrás, o IT, ao longo dos anos, deixou de ser o suporte ao negócio para ser o negócio, basta pensar em muitos serviços aos quais acedemos exclusivamente através do IT. Isto faz com que o paradigma de abordagem ao IT seja muito diferente, nomeadamente do ponto de vista estratégico. Qualquer empresa, seja qual for o setor de mercado, procura diferenciação face aos demais, é um aspeto absolutamente fundamental, e o IT está precisamente no centro disso, com a necessidade do time-to-market de disponibilizar aos clientes de forma cada vez mais rápida. Isto faz com que as prioridades do IT sejam diferentes, nomeadamente a sua disponibilidade. Vê-se a alteração das prioridades, um posicionamento muito mais estratégico. Isso passa-se praticamente em todo o lado. Depois, a transformação digital, que é uma grande buzzword, mas que de facto está a acontecer. Isso significa disponibilizar os serviços de forma digital através dos canais e sempre em permanência. Houve uma altura em que sobretudo as grandes empresas estabeleceram estratégias de outsourcing em que disseram que o IT era uma commodity. Este mindset mantém-se ou alterou-se? Aperfeiçoou-se, claramente. Quando falamos do IT, estamos a falar de uma coisa muito genérica e eu gosto de distinguir aquilo que é muito importante do que é diferenciador. Se falhar, eu tenho um problema disruptivo no negócio, mas não me diferencia porque todos os outros também fazem igual. Estas são as áreas que eu aconselho as empresas a pensarem na sua externalização porque há outros que o podem fazer melhor do que eles, de uma forma otimizada e modernizando também todo o IT, que está aí envolvido. Depois, há áreas claramente estratégias, que me diferenciam dos outros, onde normalmente as empresas não fazem outsourcing, são aquilo que é o seu desenho, evolução. Dividiria estas duas áreas. O que é extremamente importante, mas não diferencia, pode ser outsourced, mas de forma a garantir a possibilidade de ter o seu governance, para garantir que está sempre a funcionar. Qualquer uma destas áreas têm infraestruturas absolutamente críticas, que têm de funcionar em qualquer momento. Quando uma empresa consegue fazer este mapeamento, diria que está num caminho para ser melhor do que os outros. Na sua experiência, como estamos em Portugal nesses mapeamentos de transformação? Vou-lhe dar uma opinião aberta e transparente. Trabalho há muitos anos em Portugal, mas também já trabalhei no estrangeiro, estive três anos em Madrid e contactava com pessoas do mundo inteiro. A perceção que tenho é que Portugal, do ponto de vista de adoção da tecnologia, está ao nível de qualquer país desenvolvido. É verdade, também, que não se pode dissociar aquilo que são os investimentos em tecnologia daquilo que é o crescimento e bem-estar da economia, o bom funcionamento.
Houve um período em que senti que, em Portugal, os decisores das empresas estavam muito mais focados em poupanças do que em diferenciação estratégica. Se comparar com outros países, sentia que havia uma maior preocupação em criar valor através do IT. Isso aconteceu durante um tempo e, se olharmos para a economia portuguesa ao longo dos anos, não cresceu, enquanto noutros países cresceu bastante e eu penso que uma coisa está relacionada com a outra. Mas também é verdade que essa preocupação levou a uma otimização muito grande do ponto de vista do IT, que depois mais tarde veio permitir que houvesse investimentos na transformação digital e no posicionamento mais estratégico. Comparando com aquilo que conheci, não temos nada a dever a qualquer outro país do ponto de vista da evolução. Obviamente, há sempre situações particulares, mas há setores muito desenvolvidos do ponto de vista das tecnologias da informação. Um setor importantíssimo para nós é a banca. Creio que a temos ajudado numa otimização dos seus sistemas, na sua modernização e posicionamento. A banca teve períodos de enorme investimento em IT, sobretudo quando começaram a aparecer as plataformas multicanal, que foi disruptivo e transformou completamente a banca. Passaram de um modelo de negócio que assentava fundamentalmente em balcões, para as plataformas multicanal que passaram a ser extremamente exigentes, primeiro com os sites, que depois exigiram os helpdesks, e de repente existem as apps. A banca em Portugal é extremamente desenvolvida, compara bem com qualquer outro país e nunca teve uma visão de silos, sempre de cliente único; noutros sítios não era assim. Mas a banca também teve as suas crises e isso ressentiu-se no desenvolvimento das tecnologias da informação e da inovação. O retalho também se desenvolveu muito; começou mais tarde, mas depois teve um avanço muito grande. Outro setor muito interessante é o dos seguros. No início atrasou-se, mas hoje há uma oferta digital enorme. Apontou a banca, o retalho e os seguros como exemplo de setores que estão a inovar com o IT. O que podem outros setores aprender com estes três? Imenso. Antes de mais, na otimização, porque há uma consolidação. A dispersão do IT não ajuda nada à inovação. A consolidação permite ter escala, e a partir daí consegue-se otimizar e inovar. Não estou a dizer isto porque são buzzwords; são coisas pelas quais eu passei, que vi acontecer e que de facto são assim. A consolidação permite até um conjunto de poupanças que depois são reinvestidas em inovação; consegue-se ter inovação sem aumentar os orçamentos, porque se poupou. Isso é uma aprendizagem muito grande que se pode fazer, por exemplo, com a banca. Há um aspeto também muito importante que é que a transformação digital tem de ser acompanhada da transformação dos processos internos, porque, se não o for, aquilo que se muda é a forma de aceder aos serviços, mas os processos de decisão por trás são exatamente iguais, isso acaba por provocar nos consumidores dos serviços uma frustração ainda maior, porque ficam com a sensação de que as coisas realmente são mais fáceis, quando não o são. Esta transformação também nos processos de decisão, naquilo que é o backoffice dos processos, é uma aprendizagem que devem seguir. Nos serviços públicos, por exemplo, houve um grande investimento, mas depois não houve uma grande alteração nos processos e, por isso, a burocracia continua muito similar aquilo que era antes. Relativamente aos seguros, há a ideia de que o cenário atual resulta de consolidações sucessivas. Esse é um setor precursor? Passei por vários processos de consolidação de empresas e, desde logo, as infraestruturas têm um aspeto fundamental nisso, até diria que é a parte mais fácil de consolidar, o que é um pouco traiçoeiro, porque o primeiro passo de consolidar infraestruturas parece muito simples. Temos muita experiência na movimentação de infraestruturas de um data center para outro, justamente pelos processos de consolidação que existiram em Portugal. Esta aprendizagem é tremendamente importante porque de facto este passo faz-se, mas isso, em si mesmo, acaba por não conseguir captar poupanças. Portanto, o passo seguinte é muito mais difícil, que é a funcionalidade começar a ser homogénea para as várias empresas que estão a ser consolidadas e isso implica começar a alterar as aplicações, sendo que, no caso dos seguros, são funções aplicacionais, porque os produtos em si não são físicos.
Passei por processos de fusões de grandes empresas a nível europeu em que a oferta de uma empresa num país era completamente diferente da oferta noutro. É preciso tomar decisões estratégias para passar desta primeira fase e realmente consolidar as infraestruturas. Se há uma aprendizagem que tenho na minha passagem por estes processos é que quando isso se faz não é um projeto técnico; é também um projeto técnico, mas sobretudo estratégico. Se isto falhar há que fazer decisões mais dramáticas, como abandonar operações em determinados países. Acredita que está numa fase de estabilização ou já encontrou desencanto com a cloud? Acho que não estamos num processo estabilizado ainda, mas do ponto de vista de conceitos, vamos estabilizando naquilo que é a ideia correta do que há para fazer. Penso que hoje há uma consciência que é aquela que defendo: há que trabalhar com cloud híbridas e com um conjunto híbrido de infraestruturas e aplicações que funcionam em diversos tipos de infraestruturas. Desde logo, há aplicações mais antigas, mas extremamente importantes para o negócio que exigem um servidor dedicado, com um software dedicado, com um storage e política de backups dedicado e não há nada a fazer, a única coisa que há a fazer é substituir as aplicações, mas o foco não está aí, está mais naquilo que é estratégico, que é visível para os clientes e público em geral. Depois, há a possibilidade de criar uma cloud privada, que é toda uma arquitetura que se monta do ponto de vista de infraestrutura, de software, de provisioning – um tema extremamente importante. Atualmente, há uma consciência de que as aplicações e o IT vão estar nestes três grandes tipos de infraestruturas, a que chamamos de clouds híbridas. Houve uma ideia errada, na minha opinião, de que se no início usar uma cloud pública vou poupar muito no meu IT; não é e não tem de ser assim.
A utilização de uma cloud pública deve ser feita pelo tipo de serviços que disponibiliza e que de outra forma não teriam acesso a eles, ou aos quais teria acesso de uma forma muito mais cara. Por exemplo, a inteligência artificial. Não posso ter um computador de inteligência artificial dedicado a mim, não faz sentido; vou utilizar funções de inteligência artificial que estão disponíveis nas clouds públicas oferecidas pelos diferentes providers. Mas também não preciso de ter uma cloud pública para fazer correr determinadas aplicações, que consigo fazer correr num data center mais perto de mim, de uma forma até mais económica, e geridas de uma forma mais simples. A utilização de clouds públicas continua a crescer e vai continuar, não há dúvida. Muitas das aplicações novas que estão a ser desenvolvidas e que pensam estrategicamente para a oferta e serviços para o público em geral, são aplicações que utilizam muito os dados e IA. Segundo dizem os analistas, de uma forma geral, e em Portugal não é diferente, a utilização de clouds públicas está apenas a 20% ou a 25% daquilo que é o IT. Creio que não vai ser nunca a 100%, mas vai continuar a crescer. A IA não é um tema novo, mas assistimos a um um grande hype. Já sentem alguma procura de soluções que têm um motor de IA por trás? Em que cenários é que têm visto isto a acontecer? Antes de mais, nós próprios. A estratégia da Kyndryl é muito simples. O nosso CEO, Martin J. Schroeter, fala de uma estratégia muito simples que é a dos três ‘A’: accounts, o foco nas contas, no sentido da satisfação dos nossos clientes e da sua rentabilidade; alliance, onde a IBM, só por si, era um ecossistema e tivemos de criar um ecossistema muito rapidamente, fazendo acordos com os hyperscallers; e advanced delivery, muito focado naquilo que é a entrega do nosso serviço. Temos um serviço muito grande de operação de sistemas e temos diariamente milhares de alertas dos servidores, dos discos, do networking, e, hoje, está tudo completamente automatizado. Já não temos operadores a tratar destes alertas, são robôs. Mas esta implementação só faz sentido com algoritmos de IA, porque se o robô só reagir quando isso já está a acontecer, já tive um incidente, portanto tem de saber prever que aquilo vai acontecer. Isto é um exemplo da utilização dos dados e da inteligência sob os dados para melhorar e disponibilizar um serviço, não só de uma forma muito mais económica, como o próprio serviço é muito melhor, está automatizado, não há erros humanos. A Kyndryl tem uma brand que é a Kyndryl Bridge que significa precisamente um serviço automatizado ou progressivamente automatizado, robotizado, com base naquilo que são os dados históricos e na IA para fazer os seus próprios serviços, somos um grande utilizador daquilo que é a robotização e IA. É uma utilização muitíssimo grande e que vai ser crescente da IA e dos dados. Uma das previsões nas quais acredito é que vai haver uma tendência muito grande para que falemos com as empresas que nos prestam serviços, ou seja, em vez de estar a escrever, falo. Se puder falar com uma app – e isso já está a acontecer – tudo se torna mais inclusivo. Há muitos exemplos da utilização da IA e creio que vai haver muitos mais. Fiz uma apresentação há uns tempos para explicar a criticidade das infraestruturas tecnológicas e um dos exemplos que dei foi a autonomia das coisas, nomeadamente dos carros. À medida que tudo isto avança, cada vez mais a disponibilidade permanente de todas as infraestruturas que o suportam e o governance – ele próprio começa a ser automático e inteligente – tudo isso passa a ser cada vez mais crítico. Enquanto gestor, se tivesse de apontar prioridades para quem tem uma visão 360 graus, quais é podem ser os principais pontos de foco para este ano? Diria que claramente a IA. A sua utilização vai dar uma diferenciação muito grande às empresas e transformar de facto o valor dos dados em informação de negócio, é algo que se está a fazer, não é nada de novo. Estamos é longe do pico da utilização da capacidade máxima desse tipo de tecnologia e funções, não sei se alguma vez estaremos perto. A robotização não vai tirar emprego às pessoas, vai transformar o emprego das pessoas, não tenho dúvidas sobre o que estou a dizer. Vi uma apresentação extremamente interessante de um colega meu norte-americano que mostrou a evolução do desemprego com dados, salvo erro, desde 1950, e mostrava que a partir do momento em que começou o evento da robotização e da utilização da IA, o desemprego baixou. É uma correlação que tem outros fatores também, mas é uma correlação que não funciona no sentido de diminuir o emprego, pelo contrário, transforma-o. Acho que com a utilização da IA, dos dados, da robotização e da convergência de uma série de tecnologias que estão a acontecer de telecomunicações com IT, estamos perante uma disrupção, como aquelas que foram nas outras revoluções industriais e, se observarmos o que aconteceu nesses períodos, a curva de produção dos economistas dá um salto discriminado, e isso cria maior emprego, maior bem-estar, e não tem nada de mal, é muito positivo. O que acontece é que os empregos se transformam e há que cuidar daqueles que perdem este comboio de alguma maneira. A IA, a automação, a robotização, e, no meio disto, a cibersegurança que é uma preocupação enormíssima, sem dúvida. Cibersegurança e resiliência, continuidade de negócio, disaster recovery, todo o tipo de técnicas que existem e que podem ser usadas desde que o investimento tenha sido feito. |