As grandes descobertas e avanços na ciência ocorrem quase sempre fora do objetivo inicial das aplicações, e de uma forma que seria difícil prever. Joe Paton, diretor do Champalimaud Research Center para a área das neurociências, explica como ciência e tecnologia vivem de mãos dadas, e como a inteligência artificial contribui para o estudo do cérebro humano
A Fundação Champalimaud foi recentemente considerada a quarta melhor instituição sem fins lucrativos do mundo na investigação científica, na área da Inteligência Artificial (IA), de acordo com um ranking elaborado pela revista britânica Nature. Segundo a publicação, a escolha do centro de investigação português deveu-se à aplicação do conhecimento sobre o funcionamento do cérebro a modelos matemáticos avançados. No programa de neurociência, dirigido pelo norte- -americano Joe Paton, estudam-se, por exemplo, mecanismos, circuitos e algoritmos que estão por detrás do comportamento humano. “Pode dizer-se que estamos a estudar os mecanismos de inteligência natural para perceber melhor como funciona o cérebro e, com esse conhecimento, desenhar melhores algoritmos de inteligência artificial”, explica. Durante a conversa com a IT Insight, o cientista reforça a importância das ferramentas tecnológicas na construção do conhecimento científico, assim como a necessidade de criar ecossistemas de investigação multidisciplinares. Contudo, alerta para as questões éticas que é preciso assegurar para que não se ultrapassem certos limites. Acompanhe-nos nesta viagem ao interior do cérebro humano. Em que é que consiste este programa de neurociência que dirige? O fio condutor entre toda a pesquisa em neurociência é que todos os laboratórios estão interessados em compreender as bases neurológicas do comportamento. A neurociência é uma área muito vasta que vai desde o estudo dos processos a nível molecular e subcelular, que ocorrem em neurónios ou outras células do sistema neuronal, até ao modo como o cérebro produz comportamentos. O nosso programa está focado nesse nível mais elevado. Ou seja, como compreendemos as relações entre circuitos no cérebro, os cálculos que o cérebro está a efetuar, e os tipos de capacidades a nível de comportamento que esses circuitos e cálculos suportam. Como é que os dados são adquiridos? A aquisição de dados comportamentais é muito importante para nós e fazemo-lo com recurso a técnicas científicas, complementadas por ferramentas tecnológicas como machine learning e inteligência artificial. Atualmente, a visão computacional é muito mais poderosa do que há dez anos - graças aos avanços no desempenho das deep networks -, para o reconhecimento e classificação de imagens. Isto significa que conseguimos, por exemplo, fazer vídeos de alta velocidade, de organismos modelo (ratos, moscas, etc…) que estão a realizar algum comportamento, e posteriormente o rastreamento de marcadores para obter descrições quantitativas do comportamento dos animais, relacionando-o com a atividade neuronal em que estamos a trabalhar. Outra área onde julgo que machine learning e IA terão um enorme impacto na ciência, é na análise de dados moleculares, para que se possam caraterizar os genes expressos em células individuais ou em grupos de células. Quando se começa a relacionar a forma como os padrões de expressão dos genes se relacionam com os padrões de atividade elétrica que estes neurónios estão a expressar, e como se relacionam com o contexto particular de comportamento para que estamos a olhar, estas técnicas serão poderosas porque nos permitirão fazer ligações entre esses diferentes níveis, e adquirir um conhecimento holístico de como estes sistemas funcionam. Os dados adquiridos vão servir para treinar e reforçar os modelos tecnológicos com que estão a trabalhar? Sim. Podemos treinar uma rede para realizar uma tarefa específica, como descrevi para a questão do comportamento, onde fazemos um vídeo de alta velocidade, e temos de treinar a rede para detetar e identificar uma posição específica no corpo do rato enquanto ele está a realizar um comportamento. Ou seja, treinamos a rede nos vídeos que recolhemos, aplicando esse treino em vídeos que recolhamos posteriormente. Isto é treinar uma rede que já existe. Falamos, portanto, de novas formas de machine learning? Relativamente a novas técnicas de machine learning, penso que esse tipo de coisas acontece numa escala temporal mais longa e está menos no lado aplicável por agora. Vou dar um exemplo: é possível que tenha ouvido falar de uma empresa chamada DeepMind, no Reino Unido, que pertence à Google. O objetivo é desenvolver inteligência artificial em geral, mas tem várias áreas de foco, incluindo a medicina e a ciência. Uma área em que fizeram imensos progressos foi ensinar agentes artificiais a jogar jogos estratégicos, como xadrez ou videojogos da Atari, e treinar estes algoritmos para jogar a um nível que excede bastante os melhores jogadores humanos. Os mecanismos e algoritmos presentes nesses agentes espelham, de forma muito próxima, muitos algoritmos que achamos que estão implementados no cérebro. E no contexto de colocação de questões conceptuais específicas sobre como o cérebro produz determinadas funções. Por exemplo, como é que o cérebro aprende, em ambientes complexos, a adaptar o seu comportamento? Como é que aprende a maximizar as suas palavras e a minimizar custos ou ameaças? É um problema muito geral, e recai sobre aquilo a que se chama reinforcement learning (aprendizagem de reforço). Atualmente, o meu laboratório está a estudar vários circuitos neurológicos que achamos que implementam algoritmos como aqueles que encontramos em modelos computacionais de reforço, e vamos andando para trás e para a frente entre construir modelos computacionais e os dados que vemos na atividade neurológica, e os dados que vemos a nível de comportamento, para construir novos modelos. Estudar o cérebro pode ajudar-nos a inovar e a desenvolver novos algoritmos para a inteligência artificial, porque pode haver algo que é mesmo um ponto chave acerca deste sistema que, não só, pode votar a favor de certas coisas, como pode votar contra elas. Esta abordagem pode ser muito útil para a saúde, a nível de prevenção de doenças e inovação de tratamentos? Sim, a IA está a entrar fortemente na medicina, a diferentes níveis, e a ser capaz de receber grandes quantidades de dados e utilizá-los para prever resultados e para decidir linhas de ação possíveis para tratamentos. Mas uma das razões pelas quais considero necessário tomar uma abordagem mais virada para a neurociência é porque estes algoritmos podem falhar. Ainda precisam de muita curadoria, e precisamos de nos certificar que estes algoritmos não são enviesados porque vão aprender no contexto dos dados a que têm acesso. Se forem enviesados vão alterar os resultados da sua aplicação prática. Precisamos de pensar bastante sobre a robustez, flexibilidade e generalização destas abordagens, mas elas têm imenso potencial. Como garantimos a ética na utilização de tecnologias como a IA ou machine learning? A ética na IA é uma área muito vasta. Como é que podemos implementar na sociedade técnicas tão poderosas, de uma forma que nos sintamos confortáveis com elas de um ponto de vista ético? Estas são as grandes questões, e algumas já existem há muito tempo. Sempre que se desenvolve uma nova tecnologia que permite prever algo de uma forma que não seria possível anteriormente, o que é que se faz com isso? E se conseguirmos prever que alguém vai desenvolver uma doença fatal? O que fazemos com essa informação? É uma pergunta muito complicada. A partir do momento em que conseguimos identificar doenças moleculares e genéticas, muitas vezes com 100% de certeza de que uma pessoa vai desenvolver determinada doença e que não há nada que possa fazer em relação a isso, o que fazemos com essa informação? Dizemos à pessoa? Será que ela quer saber? E se a doença for hereditária ou genética e poderem passá-la aos filhos, será que quer saber? Estas são questões que já existiam antes da inteligência artificial, mas acho que vão ser multiplicadas por algumas destas técnicas. Os computadores têm servido para aumentar a capacidade humana de uma forma indireta. Até que ponto é que isto serve, de forma direta, para aumentar a capacidade humana, seja para preencher a falta de um membro amputado ou outra coisa. Vê esta possibilidade a acontecer? Penso que para certas lesões ou certas doenças em interface direta com o cérebro é, potencialmente, uma abordagem muito útil e importante de se desenvolver. No entanto, penso que será muito difícil, em termos éticos, justificar a realização de um procedimento invasivo, com riscos de infeção, AVC, sangramentos, etc., num ser humano saudável se não houver algo que é mesmo disfuncional nessa pessoa e que, de facto, afeta muito a sua qualidade de vida. O nosso corpo dispõe de interfaces incríveis com o cérebro, desde sensores à capacidade de produzir comportamentos. Todas estas capacidades são interfaces do cérebro incrivelmente poderosas. O meu ponto de vista é que, para certos casos de doenças ou lesões, estas são tecnologias muito importantes, mas nunca para aplicar em alguém totalmente saudável, com o objetivo de melhorar ou tornar a pessoa mais poderosa. Essa é uma questão ética muito difícil de ultrapassar porque acarreta sérios riscos, e porque são procedimentos invasivos. Relativamente às investigações sobre problemas de visão, por exemplo. Será possível futuramente, para alguém que nasça com uma deficiência de visão ou que perca a visão, poder colmatar ou corrigir essa falha? Sim, e esse tipo de procedimentos já existem há muito tempo. Temos, por exemplo, os implantes cocleares para pessoas que nascem com defeitos congénitos nos ouvidos, que permitem corrigir, em grande medida, essa falha ao conectar um microfone a um dispositivo que estimula eletricamente, ao nível dos sensores na coclear. Isso é muito importante, especialmente na fase inicial do desenvolvimento, porque o cérebro é plástico. Ou seja, na fase inicial do desenvolvimento, a experiência que se recebe com input sensorial está a moldar a capacidade de processamento desse tipo de informação, ao longo da vida do indivíduo. Portanto, sim, para perdas de visão congénitas e problemas semelhantes, podemos ver, dependendo da causa e do que ainda está lá em termos biológicos, este tipo de interfaces, como implantes de retina, a serem usados. Mas estes são casos em que estamos a trabalhar perifericamente. Não estamos a entrar no crânio, mas a dar algo a alguém que perdeu uma capacidade que estamos a tentar restituir. A verdade é que estamos constantemente a desenvolver coisas que alteram a forma como os nossos cérebros funcionam, mesmo que não estejam em interface direta com o cérebro. Um exemplo mundano: quando era miúdo, lembro-me que sabia de cor os números de telefone de todos os meus amigos. Atualmente, nem sei o meu número de telefone de casa. Ou seja, libertei toda essa parte do meu cérebro, porque agora está tudo no telemóvel. A tecnologia já me permitiu mudar a forma como o meu cérebro funciona sem ter de abrir o meu crânio e realizar um procedimento invasivo que representa risco de vida. Ao mudarmos a forma como o cérebro funciona, não estamos a limitar algumas capacidades? Ou estamos simplesmente a desenvolver outras? Penso que é a segunda opção. Todas as gerações olham para as gerações mais novas e para as novas tecnologias com que estas interagem e têm medo de que isso nos leve a ser menos inteligentes. Quando eu estava a crescer, o problema era, por exemplo, ver demasiados desenhos animados de manhã. Mas acho que me saí bem. Atualmente, é o tempo de ecrã que nos preocupa. Tudo tem que ser com moderação, obviamente, mas há sempre problemas com o facto de as pessoas se poderem tornar viciadas. O nosso cérebro é incrivelmente adaptável e, enquanto seres humanos, esse é o nosso traço forte. Fomos capazes de sobreviver em circunstâncias extremas, precisamente por causa da flexibilidade e da inteligência que está armazenada no nosso cérebro. Não somos particularmente fortes ou robustos no reino animal, e a razão pela qual sobrevivemos e prosperámos deve-se à adaptabilidade dos nossos cérebros. Por isso estou confiante que somos capazes de nos adaptar ao cenário tecnológico em mudança. Que mensagem gostaria de deixar à sociedade? Em primeiro lugar, os cientistas que fazem aquilo a que chamo investigação fundamental precisam de fazer um melhor trabalho a comunicar com o público e explicar porque é que, enquanto sociedade, devíamos investir neste tipo de investigação. Se alguém estiver a fazer investigação sobre o cancro ou para desenvolver um novo foguetão, é muito mais fácil para o cidadão comum compreender a necessidade de fazer essa investigação. Mas no que respeita a investigação fundamental, pode ser mais difícil para as pessoas perceberem o porquê de se estar a investir naquilo, porque não entendem a aplicação. Se olharmos para a história da ciência ou da medicina, a grande maioria do tempo, as aplicações daquilo que fomos desenvolvendo, se voltarmos ao início das descobertas que permitiram essa mesma aplicação, como um medicamento ou um tratamento, a investigação quase nunca teve a ver com a doença ou a aplicação em causa. Os cientistas estão a só tentar perceber como as coisas funcionam? É muito abstrato dizer que os cientistas de investigação fundamental estão apenas a tentar entender como o mundo funciona, porque o que eles estão a fazer é tentar construir um registo do conhecimento sobre como o mundo funciona. Se olharmos para a história de ciência e medicina, os avanços ocorrem sempre fora do objetivo das aplicações de uma maneira que, quase nunca, foi possível prever. Atualmente, há uma grande pressão, a nível governamental e do público em geral, para investir em coisas que são aplicáveis, mas acho que é importante que as pessoas entendam que o “poço” de onde vêm as aplicações para essas coisas é uma fonte essencial de conhecimento e que, se deixarmos de investir, eventualmente, esse “poço” vai secar. O que precisamos não é de investir apenas em ciência aplicável, mas, em vez disso, é preciso criar ecossistemas onde haja muita interação entre diferentes tipos de cientistas, engenheiros, médicos e outras especialidades. Precisamos de repensar como podemos mobilizar grupos de pessoas diferentes, e com diferentes áreas de foco, e fazer com que interajam uns com os outros e partilhem informação, porque esse é o motor para novas tecnologias, novas aplicações, e crescimento económico. |