“Foquem-se nas estratégias, pensem na tecnologia depois”

Em entrevista com a Smart Planet, Richard Budel, responsável pela divisão de smart cities da Huawei na Europa Ocidental, delineia as características que definem uma verdadeira smart city, fatores de sucesso e tendências que as cidades vão enfrentar nos próximos anos

“Foquem-se nas estratégias, pensem na tecnologia depois”

Tendo ajudado a construir mais de 160 cidades inteligentes em mais de 100 países e regiões, a Huawei é um dos poucos players do setor a fornecer um conjunto completo de soluções de IT para smart cities. Richard Budel, CTO - Government & Public Sector Western Europe & CIO - Smart Cities da Huawei explica de que forma é que a Huawei está a ajudar as cidades europeias não só a implementar tecnologias como também a definir estratégias sustentáveis a longo prazo.

 


"Conseguem ser inteligentes sem tecnologia? Se a resposta for sim, então, por defeito, têm de excluir a tecnologia da definição"


 

Smart Planet - Qual tem sido a estratégia da Huawei desde que entrou para o mercado de smart cities da Europa Ocidental?

Richard Budel - Na Europa, onde ainda estamos há muito pouco tempo, a abordagem pela qual optámos foi criar relações muito profundas com um número reduzido de clientes, em vez de nos relacionarmos de forma superficial com um grande número. Isto foi, em parte, porque a Europa Ocidental é um mercado relativamente novo para nós, e a nossa capacidade de fazer muitos projetos de modo aprofundado é reduzida. Assim, focámo-nos em Espanha, Itália, Alemanha e Holanda como países chave, simplesmente porque são países nos quais é muito fácil envolver os cidadãos, em particular em Espanha. 

A abordagem é, no fundo, baseada em duas ideias. A primeira é que a definição de smart city não tem de todo a ver com tecnologia – o que para muitos dos nossos clientes é surpreendente. Do meu ponto de vista, a questão é muito simples: conseguem ser inteligentes sem tecnologia? Se a resposta for sim, então, por defeito, têm de excluir a tecnologia da definição. E acho que há muitos exemplos de cidades que conseguiram ser inteligentes sem usarem necessariamente tecnologia. É por isso que a nossa primeira decisão foi não incluir tecnologia na nossa definição de smart city.

 


"O projetos de smart city na Europa estão muito direccionados para segmentos da sociedade de classe média ou média alta, e as pessoas que mais poderiam beneficiar destes serviços são na verdade cada vez mais marginalizadas"


 

Como define, então, uma smart city?

Para uma cidade ser inteligente, tem de ter três características. Em primeiro lugar, já não deve estar focada em saber o que está a acontecer em determinado instante. Durante muito tempo, houve esta ideia de que o objetivo era colocar sensores de IoT em todo o lado e saber o que está a acontecer em tempo real. A questão é, se eu me puser no meio de uma autoestrada, posso ter uma visão perfeita de 365 graus sobre o que está a acontecer – mas se for atropelado, ninguém vai olhar para mim e dizer “ali está um homem muito inteligente”. Portanto, ser inteligente é mais do que simplesmente responder à pergunta ”o que é que está a acontecer agora?”. É preciso saber também o que poderia acontecer, o que deveria acontecer, e o que irá acontecer. “O que está a acontecer” é interessante e importante, mas não é inteligente. 

A segunda característica é que uma smart city procura estabelecer um equilíbrio sustentável entre o ambiente, a economia e a sociedade. O que não quer dizer que estejamos a tentar criar um estado de estagnação – obviamente, a mudança é importante, e vai ser gerada por uma grande variedade de fatores. A chave é aceitar a inviabilidade da mudança ao mesmo tempo que se mantém o equilíbrio.

Adicionalmente, quando falamos da sociedade há duas qualificações adicionais a ter em consideração. Em primeiro lugar, uma cidade só pode ser inteligente se abordar os seguintes grupos dentro da sociedade: residentes, turistas, negócios e funcionários  públicos. Se não houverem serviços direcionados para cada um destes grupos, a cidade está a tornar-se mais inteligente, mas não se está a tornar inteligente. O segundo critério é que uma smart city deve endereçar todos os segmentos da população. Uma das características dos projetos de smart city na Europa é que estão muito direccionados para segmentos da sociedade de classe média ou média alta. E as pessoas que mais poderiam beneficiar destes serviços são na verdade cada vez mais marginalizadas. Ou seja, as smart cities estão a separar a sociedade, não a uni-la, e não creio que isso seja compatível com a definição de smart city. 

Por último, uma smart city tem um mecanismo escalável e receptível para potenciar a oferta de múltiplos serviços. E é importante fazer aqui a distinção entre “potenciar a oferta” e “oferecer”. Uma smart city não tem de oferecer serviços, só tem de garantir que os serviços são oferecidos. Historicamente, as cidades têm-se focado em serem fornecedores de serviços, mas a verdade é que há muitas coisas aqui que o governo não faz muito bem. Portanto, devia ser aceite, ou mesmo desejável, que o papel do governo nas cidades deixe de ser de fornecedor de serviços para um papel de orquestração ou governança.

 


"O problema nas abordagens das smart cities é que só se têm focado em impulsionar o progresso de um ponto de vista técnológico"


 

Como é que a Huawei está a ajudar as cidades a irem ao de encontro desta estratégia?

A Huawei foca-se exclusivamente em plataformas. Na Europa, o que vemos é que as smart cities têm de cinco a 15 serviços isolados, não integrados uns com os outros. O que decidimos é que não aceitamos isto e só colaboramos com cidades dispostas a trabalhar com uma abordagem horizontal.

O problema nas abordagens das smart cities é que só se têm focado em impulsionar o progresso de um ponto de vista técnológico. Este é o principal problema que temos visto. Deixam que a tecnologia assuma um papel de liderança mas não pensam em como a podem usar para impulsionar o progresso.

O que acontece é que, quando falamos com um cliente, geralmente estão a pensar em termos de um projeto piloto ou uma prova de conceito, e nós fazê-mo-los pensar de forma diferente, como a primeira fase de um projeto operacional a longo prazo. Se tivermos a sensação de que a cidade não está disposta a assumir esse compromisso, não avançamos com o projeto porque não estaríamos a trabalhar a um nível com o qual estamos confortáveis. 

O que fazemos é trabalhar com os clientes para definir que tipo de cidade querem ser e descrevê-la em termos civis – não técnicos, nem sequer necessariamente em termos de negócio, mas com as pessoas em mente.

Pedi-mos-lhes que pensem de que forma pretendem gerir a economia, o ambiente e a sociedade, e a partir daí começamos a esboçar os use cases e cenários de negócio, e apenas aí é que começamos a trazer tecnologia para a equação. Nós fazemos isto, paradoxalmente, ao dizer que a tecnologia não interessa. Pensem nas estratégias que querem implementar, e nós preocupado-nos com a tecnologia. E isto torna-se muito importante em ajudar os clientes a evitar consequências não intencionais. Um exemplo muito comum de momento é a telemedicina – como é que podemos ajudar idosos ou pessoas muito doentes a serem diagnosticadas e tratadas com a minima necessidade de deslocação. Este é um problema técnico muito fácil de resolver, mas cria um problema social. O que muitas vezes acontece nestes casos, é que se cria nestas pessoas uma enorme solidão, porque para muitos idosos a maioria do contacto social acontece nos hospitais, centros de saúde e farmácias.

Este tipo de correlações são invisíveis se olharmos para o assunto de um ponto de vista puramente técnico. O nosso objetivo é que os clientes se foquem em todos os fatores sociais, económicos e políticos, e pensem na tecnologia depois. 

Grande parte disto é garantir que o governo assuma o papel de orquestrador e coordenador; que se afaste da noção de governo como uma estrutura e volte para a governança como um processo.

Esta governança tem dois elementos. Uma é o controlo, e os governos, historicamente, são muito, muito bons em controlar as coisas, mas a outra metade é liderança – com a qual, historicamente, os governos têm dificuldade. Na tecnologia, em particular, permitiram que a indústria de TI assumisse o papel de liderança.

Assim, creio que é extremamente importante que as cidades alcancem um equilíbrio entre liderança e controlo. 

A outra parte – e isto é verdadeiramente difícil – é o facto de que a tecnologia se move muito, muito rapidamente e a legislação e as políticas demoram anos a serem desenvolvidas e implementadas, enquanto a tecnologia muda a cada três, quatro, cinco, seis meses. Acho que não é realista esperar que o governo consiga acompanhar a tecnologia.

Para que isto funcione, é necessário encontrar uma parceria melhor entre as empresas de tecnologia do setor privado e o setor público, porque o modo como foi trabalhado até agora está assente numa relação hostil na qual as empresas de tecnologia estão a tentar arrastar o governo, e o governo está a fincar o pé.

Ambos os papéis são importantes. Uma das principais funções do governo é equilibrar grandes mudanças, para manter a situação sustentável para a população, mas acho que é necessário que os governos confiem nos conselhos dos fornecedores de IT e, ao mesmo tempo, os forcem a de facto pensar sobre as implicações legais, culturais e políticas de tudo o que fazem. 

 


"A realidade é que os dados não são o novo petróleo; os países e os governos vão à guerra para proteger o seu petróleo, mas fazem um péssimo trabalho na proteção de dados"


 

Como é que a Huawei está a contribuir para que isto aconteça?

De forma algo estranha. O mecanismo de mudança, agora, são dados –  todos dizem que os dados são o novo petróleo, os dados são de onde vem o valor, e todos os fornecedores estão a tentar obter acesso aos dados.

A realidade é que os dados não são o novo petróleo; os países e os governos vão à guerra para proteger o seu petróleo, mas fazem um péssimo trabalho na proteção de dados. Eu gostaria que de facto tratássemos os dados mais como petróleo. O que estamos a tentar fazer é, em vez de tentar meramente encontrar um equilíbrio entre as empresas de tecnologia e os governos, tentamos contrabalançar ativamente o pêndulo, que favorece fortemente as empresas de tecnologia, para dar mais controlo ao governo.

O que estamos a tentar criar é um ambiente de smart city no qual temos, por exemplo, um data lake, e tentar que todos os fornecedores de serviços de IT envolvidos lá armazenem os seus dados – mas depois fornecemos as chaves ao governo, e estes passam a ser a sua propriedade; o governo passa a ter direito a todos os benefícios comerciais ou monetários deles extraídos, mas também fica responsável pelos mesmos.

Isto porque até agora, os benefícios financeiros dos dados retirados das cidades foram apenas para o setor privado. Estamos a tentar ajudar a criar um equilíbrio, ao capacitar as cidades para que comecem a controlar os dados. Feito isto, a discussão sobre parcerias, equilíbrio e relações equitativas torna-se mais fácil, porque a cidade tem o que as empresas de IT querem, e ao qual não têm livre acesso.

 


"A tecnologia não é o fator limitante de uma cidade se tornar inteligente – são as políticas, os processos, a governança, os morais da nossa cultura" 


 

O que diria que é o principal fator de sucesso para as smart cities?

Quando olhamos para os muitos problemas técnicos e de governança associados a projetos de smart city, é tudo muito mais sofisticado do que o que a maioria dos governos é capaz de gerir. Os governos têm habilitações em políticas e legislação; as empresas de IT têm as capacidades tecnológicas, as instituições legais e académicas podem começar a trabalhar na framework económica e legislativa. É preciso começar a juntar todas estas peças.

Como tal, o principal fator de sucesso nos próximos cinco anos será a capacidade das cidades criarem esse comité de especialistas com várias partes interessadas e múltiplas áreas de atuação para liderar as iniciativas.

Encontrar este equilíbrio será uma arte, não uma ciência, porque existem muitos especialistas em áreas muito distintas, pelo que muitas pessoas diferentes terão muito poder.

E será preciso tentar convencê-las a abdicar parte desse poder, o que será desafiador, principalmente para as empresas de IT, porque estas não só têm já de si poder, como também nós lhes damos poder – e, quando lhes damos poder, abdicamos do nosso poder de tomada de decisão.

Se eu for pensar na apresentação sobre smart cities que fiz em março de 2002 no World Innovation Exchange, em Vancouver, e depois pensar, digamos, numa apresentação que tenha feito há quatro ou cinco semanas, do ponto de vista  prático não mudou muito.

O que mudou é que a tecnologia subjacente se tornou muito mais fácil; muitas das coisas que dissemos que queríamos fazer dezoito anos atrás, podemos fazer de forma muito mais fácil, mais rápida e mais barata do que podíamos naquela época.

Como tal, isto significa que a tecnologia não é o fator limitante de uma cidade se tornar inteligente – são as políticas, os processos, a governança, os morais da nossa cultura. No governo, muito disso tem simplesmente a ver com o facto de elegermos novos governos locais a cada quatro anos e, como tal, ninguém pensa para lá do atual termo.

 


"A democratização da tecnologia fará com que as cidades maiores possam começar a desempenhar um papel de fornecedor de serviços para cidades, vilas e aldeias menores"


 

Quais serão as principais tendências para as smart cities nos próximos cinco a dez anos?

Em primeiro lugar, veremos um aumento dramático na instrumentação do meio ambiente. O custo dos sensores está a diminuir; a necessidade de medir e gerir o ambiente físico está a aumentar. Com o aumento da conectividade, será muito mais fácil instruir o meio ambiente. Isto é: por um lado, estamos a recolher dados do ambiente, mas por outro lado, estamos a devolver ações e decisões ao ambiente. 

Um exemplo perfeito são as câmaras de trânsito e os semáforos. Todos sabemos de que forma é que uma câmara de trânsito captura informações sobre o movimento do trânsito num cruzamento, mas esquecemo-nos que parte da IoT vai na direção oposta, levando informação de volta ao semáforo para otimizar o fluxo do tráfego.

Assim, acho que os primeiros dois anos desta tendência de instrumentação se concentrarão na recolha de dados, e começaremos a ver uma manipulação mais direta do ambiente. Creio que esta será uma das tendências inegáveis dos próximos dez anos. 

Creio também que veremos as cidades a moverem-se na direção de uma abordagem de plataforma de prestação de serviços. A profundidade dessa plataforma ainda está para ver, bem como se será pura infraestrutura ou se terá elementos de plataforma as-a-service ou mesmo smart city as-a-service.

Acho também que vamos parar de falar tanto em cidades e começar a falar mais sobre regiões. Isto porque, na Europa Ocidental, já somos, em média, 84% ou 85% urbanos – temos muitas cidades. A tendência para a urbanização da qual tanto se fala – de que em 2050 75% da população mundial viverá em cidades – já não é relevante para nós na Europa Ocidental. Já somos maioritariamente urbanos há muito tempo.

O que penso que vai começar a acontecer é que a democratização da tecnologia fará com que as cidades maiores possam começar a desempenhar um papel de fornecedor de serviços para cidades, vilas e aldeias menores.

E o que espero que possamos ver nos próximos dez anos é que o limite geográfico de uma cidade seja um conceito separado do seu limite digital, e que este último se estenda muito além do mesmo.

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