Foi publicada em Diário da República a Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, que aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. A Carta entrará em vigor em julho, 60 dias após a sua publicação
Marcelo Rebelo de Sousa promulgou, a 9 de maio de 2021, o decreto que aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. O documento, publicado a 17 de maio, é constituído por 21 artigos, que determinam vários direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A versão final do documento foi aprovado por uma larga maioria e não teve qualquer voto contra. PS, PSD, Bloco de Esquerda, CDS, PAN, e as deputadas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram a favor, já o PCP, os Verdes, o Chega e a Iniciativa Liberal abstiveram-se. Neste diploma são enunciados direitos como o direito “ao esquecimento “, ou seja¸ todos têm o direito a que dados pessoais que lhes digam respeito sejam apagados, nos termos da lei europeia e nacional, podendo, para tal, solicitar o apoio do Estado; à proteção contra geolocalização abusiva; ao desenvolvimento de competências digitais ou ainda o direito de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital. A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital refere ainda os direitos associados ao próprio acesso à internet, determinando que todos os cidadãos “têm o direito de livre acesso à Internet”, e colocando sobre o Estado um conjunto de deveres relativos à promoção de um ambiente digital saudável, mas também à garantia da própria infraestrutura da rede. O documento garante a transposição da liberdade de expressão e criação para o ambiente digital, proíbe o Estado de interromper o acesso à Internet ou a partes dela, assegura o direito à neutralidade na Internet, e cria ainda a figura da ação popular digital que, na prática, concede o direito aos cidadãos de recorrer a tribunais sempre que não virem os seus direitos digitais cumpridos. Segundo Daniel Reis, advogado na DLA Partners, esta lei “contém elementos muito diferentes: um elenco de direitos existentes, 'reorganizados' para o contexto digital; um caderno de encargos para o Governo; e algumas novidades. O seu mérito e interesse reside sobretudo no enquadramento destas questões perante o mundo digital, o qual pode e deve ser discutido e analisado. Sejamos claros, há aqui poucas novidades, e não antecipo um impacto relevante desta legislação para as empresas e para os cidadãos. Aliás, é revelador que porventura o tema mais relevante – os direitos dos trabalhadores na era digital – tenha ficado de fora”. Já em relação ao caderno de encargos “teremos de esperar para ver. É anunciada uma tarifa social de acesso à Internet, o seu impacto dependerá da configuração da oferta e do preço. Os operadores e a ANACOM já estão a discutir este tema”. Em relação a temas como a utilização de inteligência artificial, direito ao esquecimento e controlo sobre conteúdos nas redes sociais após a morte, “a lei não acrescenta nada de verdadeiramente novo. Noutros, como a utilização de QR codes e geolocalização, foram criadas regras inadequadas, e de difícil conjugação com o RGPD”. “Com a publicação da Carta, Portugal participa num processo de transformação digital e de promoção de um ambiente digital que fomente e defenda os direitos humanos”, acrescenta. É importante recordar que o documento que está no centro do artigo polémico é um plano de ação europeu e não uma diretiva ou documento legislativo, o que não exige uma transposição direta para o ordenamento jurídico dos Estados-membros. O artigo no centro da discórdiaSegundo o artigo, o Estado “assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação” para “proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas” condenando aqueles que “produzam, reproduzam e difundam narrativas”. Na esfera pública, muitas têm sido as críticas feitas ao documento, acusando-o de ser uma forma de censura. No artigo 6º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital pode ler-se “Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo”, mas o que criou uma grande polêmica foi o facto do Estado “apoiar a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”. Apesar de ainda não serem conhecidos mais detalhes e de se ter abstido na votação parlamentar, a Iniciativa Liberal já comunicou que irá apresentar uma proposta para alterar o artigo 6.º da carta, que ainda terá de ser sujeita a regulamentação por parte da Assembleia da República. Também para António Filipe, deputado do PCP, “questões relativas à interpretação da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital ou sobre as razões que a motivam devem ser colocadas a quem a aprovou. Não foi o caso do PCP”, uma vez que o partido “não votou favoravelmente esta lei, tendo optado pela abstenção, por discordar da adoção por Portugal de um “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação” que introduz um controlo público europeu sobre o que se considera desinformação, tornando a narrativa das instituições europeias como critério da verdade”. “O PCP também se demarcou do apoio estadual à criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social, por entender que não cabe ao Estado promover esse tipo de apoios.” Segundo Daniel Reis, a lei vem tentar definir o que se deve entender por fake news, e determina que qualquer pessoa pode apresentar queixas à ERC, o regulador do setor da comunicação social. “Esta alteração é significativa, pois a ERC deixará de apenas regular os órgãos de comunicação social, para poder regular qualquer meio onde surjam fake news. Este mecanismo não é isento de críticas – a própria ERC veio contestar esta regra num parecer apresentado no Parlamento – e pode gerar alguns problemas de competência. Um ponto que a mim me preocupa é a capacidade da ERC de analisar e decidir as queixas em tempo útil. Um dos aspetos mais perniciosos da desinformação, o termo utilizado pela lei para designar as fake news, é a velocidade da sua propagação. Qualquer sistema de combate à desinformação tem de ser rápido para ser eficaz”. A aprovação superior à necessáriaA Assembleia da República aprovou, por uma maioria superior à necessária, a revisão constitucional desta lei, que é uma lei vinculativa, em defesa de liberdades e para resolver problemas reais. A nova legislação foi aprovada em votação final global com os votos do PS, entre outros partidos. “Foi uma operação legislativa encabeçada pelo PS de acordo com o nosso programa. Com grande êxito, já que conseguimos obter uma maioria de aprovação superior à necessária para aprovar uma revisão constitucional e a promulgação do PR. A Carta é pioneira à escala europeia e não só”, explica o deputado José Magalhães que apresentou, no Parlamento, o projeto de lei do PS sobre a Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital. Na sua perspetiva, “a Carta não é um poema sobre o mundo digital. É uma lei que consagra direitos e fixa obrigações do Estado para assegurar que se passe do Diário da República à prática. Tal como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, filha da revolução francesa, visa a Liberdade, igualdade e fraternidade no século da revolução digital”. “A lei pode resumir-se numa frase: Sem direitos fundamentais, a transição digital converteria milhões de homens, mulheres e crianças em zombies digitais, vampirizáveis nos seus dados, manipuláveis para efeitos comerciais e políticos, privados de autonomia e dignidade. O advento fulminante do ciberespaço rasgou novos horizontes à humanidade e tornou central a batalha pela sua democratização”, acrescenta. “Estamos na era das plataformas digitais. A chave da economia das plataformas é simples: criar e disponibilizar serviços que atraem utilizadores, registar tudo o que fazem, com quem se relacionam e o que sobre eles dizem outras fontes de informação. Seguidamente, algoritmos mastigam os dados e aprendem em profundidade. Os mesmos computadores que ganham a humanos jogos de xadrez, aprendem a distinguir se aqueles pequenos pontos que o seu olho computacional “vê” numa mamografia antecipam um cancro daí a dois anos ou se, pelo contrário, não devem ser motivo de preocupação. O legislador não pode assistir passivamente a estas mudanças”, conclui. |