Vivemos, indiscutivelmente, tempos de euforia tecnológica e, dir-se-á, de fuga para o digital.
Porventura um dos exemplos mais evidentes deste fenómeno consiste nas moedas digitais ou criptomoedas. Na verdade, o que nelas está em causa não é a mera desmaterialização da moeda, enquanto unidade de câmbio, mas, diferentemente, a vontade de criação de uma economia digital em paralelo, mais rápida, mais responsiva, mais sofisticada, mais segura, mais garantística, geradora de maior valor e com custos de transação muitíssimo mais baixos. Subjacente às criptomoedas está, por outras palavras, um certo ânimo contra-corrente, libertário, “indie”, que, através do recurso à tecnologia blockchain (desenvolvida inicialmente para dar suporte às bitcoins mas, entretanto, ampliada pela plataforma Ethereum), pretende substituir os intermediários tradicionais (bancos, tribunais, agregadores, agências, etc.) por relações peer-to-peer, tendencialmente descentralizadas e desintermediadas. Essa mesma preocupação encontra-se presente, por exemplo, também na recente Diretiva 2015/2366 de 25 de novembro relativa aos serviços de pagamento no mercado interno (a denominada “PSD2”), que, de forma igualmente revolucionária, consagra um princípio de open banking. No fundo, num caso ou no outro, o que está em causa é um certo regresso aos tempos da internet tal como foi concebida por Tim Berners-Lee. As criptomoedas encontram, porém, entre vários outros, três importantes desafios. Um primeiro é o desafio legal e regulatório. Com efeito, as criptomoedas constituem uma realidade nova, de feição profundamente disruptiva e que, em boa verdade, assinalam uma invasão (porventura sem precedentes) pela tecnologia de setores altamente regulados, como sejam o bancário e o financeiro. Neste âmbito, é inevitável que os instrumentos normativos existentes se mostrem ainda incapazes de dar resposta adequada, sendo certo, em todo o caso, que não será também expectável que o legislador decida ingressar em terrenos normativos sem antes deixar que a tecnologia atinja o seu ponto médio de maturidade. De resto, vimos recentemente o Banco de Portugal defender que será ainda prematuro “apertar o cerco” às moedas virtuais, anunciando não ter intenção de regulamentar as criptomoedas. Um segundo desafio está relacionado com uma certa dificuldade de interpretação da tecnologia. No caso das moedas virtuais, essa dificuldade reside na perceção generalizada existente em torno das mesmas de que estamos unicamente perante um veículo especulativo, de alto risco mas de valorização rápida e exponencial. Essa perceção é, em nosso entender, limitadora do que são as moedas virtuais e bloqueadora da consideração de todas as possibilidades percetivas abertas por uma alteração de paradigma tão profunda como aquela que foi trazida pelas criptomoedas. Talvez por isso seja necessário que nos “desiludamos” primeiro para que, então, estejamos em condições de apreender o real valor destas moedas. Um terceiro e último desafio diz respeito a um certo efeito de contágio exercido pelas criptomoedas sobre a tecnologia que as suporta. A este respeito, talvez se possa mesmo dizer que a verdadeira revolução neste domínio das criptomoedas não estará na criação da moeda propriamente dita mas na tecnologia de blockchain que permite a sua transação, tecnologia essa que hoje em dia começa a ser aplicada nos mais variados domínios e que revela um potencial praticamente ilimitado. De tal forma que se diz que o blockchain será a mais importante inovação tecnológica desde o aparecimento da internet. Se é ou não, ainda não sabemos. Do que não temos dúvidas, porém, é que confundir blockchain com moedas virtuais constituiria não apenas um equívoco, mas a antecâmara de uma revolução condenada ao fracasso. Numa era singular de criação e inovação, a velocidade transformativa da tecnologia tem conduzido a uma profunda alteração dos paradigmas de comportamento e pensamento que, até há bem pouco tempo, considerávamos inabaláveis. Neste sentido, a 4.ª revolução industrial não representa apenas a revolução do digital, da internet, dos algoritmos e dos dados. Representa, antes pelo contrário, um momento de verdadeira reconfiguração das tradicionais relações de equilíbrio – ou de força, se preferirmos – entre o mundo físico e o mundo virtual. A dialética constante entre estes dois mundos tem, na verdade, revelado uma importante força gravitacional mais favorável à expansão de uma “nova ordem” digital (chamemos-lhe assim), profundamente disruptiva, axiologicamente neutra, algo anárquica e porventura tão revolucionária quanto as teorias de Ptolomeu, Copérnico ou Kepler acerca dos modelos cosmológicos. É neste contexto que devemos compreender as criptomoedas e será a sua dependência (cada vez maior e mais intensa) face à tecnologia a determinar o seu destino. |